Caro Filoteu de Betânia
Hoje, compartilho contigo alguns escritos de alguns anos atrás. Espero que acrescente algo de bom na tua vida e te ajude a ser discípulo ou discípula de Jesus.
Por isso, entrando no mundo diz: ‘Não quiseste hóstia, nem oblação, mas formaste-me um corpo'”[1]. Estamos diante do grande mistério do Verbo eterno que, sendo Deus com o Pai desde o princípio, assume a nossa carne humana. João, em sua epístola, proclama pasmo de emoção: “O que era desde o princípio, o que vimos com os nossos olhos, o que contemplamos, o que apalparam as nossas mãos relativamente ao Verbo da vida, isso que vimos e ouvimos, vô-lo anunciamos”[2]. E todo esse entusiasmo foi porque Ele tinha um corpo humano e por isso sexuado, como os demais seres humanos, pois “o Verbo se fez carne e habitou entre nós”[3]. E este mesmo Senhor fez do seu corpo o sacramento do Amor, da doação, da entrega sem reservas, sem medidas na generosidade do dom de si: “Isto é o meu corpo, que é dado por vós”[4]. Não será este o referencial para viver a castidade de modo profundamente cristificado? Muito mais do que isolamento, o dom da castidade se torna em Cristo uma partilha abundante e fecunda.
A realidade corpórea é rica, fecunda, carregada de significados. Não podemos subestimá-la, como se fosse algo de inóspito, um elemento rebelde contra a qual se deve lutar, a inimiga da alma, naquelas redutivas dicotomias dualistas.
“O corpo, segundo a Bíblia, não é uma apêndice insignificante do ser humano, é uma parte integrante dele. O homem não tem um corpo, ele é um corpo. O corpo foi criado diretamente por Deus, feito e plasmado por suas próprias “mãos”, foi assumido pelo Verbo na encarnação e santificado pelo Espírito no Batismo. Ele é justamente o ‘templo’ do Espírito Santo*. (…). A carne serve ao Espírito e o Espírito ampara a carne. É exatamente através do corpo – ou seja, o elemento que mais intimamente liga o fiel cristão a este mundo – que se manifesta nele o Espírito. (…). Cabe, portanto, ao Espírito a tarefa de santificar a carne, não só combatê-la; promovê-la, e não só neutralizá-la”[5].
A sexualidade humana constitui um elemento fundamental para definir a identidade humana. Não se reduz à dimensão generativa ou simplesmente afetiva, mas quando amadurece se abre à esfera oblativa e amigável. “A sexualidade é antes de tudo uma energia que perpassa todo o humano, empurrando-o para fora de si mesmo e como que obrigando-o a estabelecer laços com os outros e com o mundo circunstante. É assim uma energia que vence a esterilidade e projeta o ser humano na esfera do amor”[6]. Deste modo a sexualidade se torna um dom e indica aquilo que a pessoa é. Ser homem ou ser mulher são modos concretos de ser. Quando guiada pela razão, a sexualidade não se dissolve nas cavernas escuras da paixão.
A pessoa humana é tipificada sexualmente como homem e mulher. Assim, encontra um modo todo próprio de ser. “E criou Deus o homem à sua imagem; criou-o à imagem de Deus e criou-os varão e fêmea”[7]. E como homem e mulher a pessoa humana se descobre chamada a dialogar dinamicamente com os outros. E neste anseio de se comunicar tende a se completar integralmente no outro. O caminho da integração passa necessariamente pelo confronto homem-mulher. Tendo presente as teorias da polaridade, da complementariedade e da reciprocidade fica claro que esta última se coaduna melhor com a integração sexual e afetiva do consagrado. Homem e mulher não são incompletos como se o celibatário ou o que não casa fosse um deficiente, mas a reciprocidade revela a riqueza do humano com possibilidade de várias significações[8]. O eu se auto-define no tu, numa comunhão que se abre à formação de um nós.
A sexualidade não se reduz à genitalidade, mas se afirma e se consolida de modo fecundo e plenificante na proporção da sua dialogicidade em chave oblativa e comunial. Daí nasce a castidade, virtude que visa direcionar as potencialidades afetivas, ordenando-as a uma dinâmica de comunhão, de unidade a partir da riqueza das diferenças. Esta força impulsionadora (sexualidade) que é harmonizada pela inteligência e pela vontade (na castidade) deve ser compreendida como um dom, um meio rápido e eficaz (mesmo que nem sempre fácil) de direcionar as ternuras e os ardores do coração para o Senhor e para a realização dos seus desígnios a respeito de cada pessoa. A castidade “significa a integração correta da sexualidade na pessoa e com isso a unidade interior do homem em seu ser corporal e espiritual. (…). A virtude da castidade comporta, portanto, a integridade da pessoa e a integridade da doação”[9]. Por isso, tanto o matrimônio vivido em Cristo que ama e por isso mesmo manifesta este amor através da mediação humana de um cônjuge quanto no celibato consagrado que encontra a sua fonte na imitação e no seguimento de Cristo vivendo um amor dedicado exclusivamente para Deus, sem as mediações; ambos, a seu modo, tornam palpável este amor do Senhor e, por isso mesmo, tornam-se uma maravilhosa superabundância, contanto que não caiam no reducionismo egoísta dos próprios interesses ou vantagens.
A liberdade de escolha do estado de vida, ou seja, da acolhida do dom de Deus, brota do mistério do encontro de duas liberdades: a de Deus que chama e a da pessoa humana que responde. Ambas introduzem na história humana a dimensão da salvação que brota do superabundante Amor misericordioso da Trindade. Nesta linha de pensamento a opção seja para o matrimônio seja ao celibato consagrado (dos sacerdotes também) nasce de uma iniciativa divina. “Não fostes vós que me escolheste, mas fui eu que vos escolhi a vós, e vos destinei para que vades e deis fruto, e para que o vosso fruto permaneça”[10].
No caso da castidade compreendida como virgindade, estado celibatário, Santo Ambrósio dizia que a «castidade não se impõe, mas se propõe»[11]. Este estado também exerce seu admirável fascínio sobre muitas pessoas que vivem uma experiência profunda de Deus, no seguimento e imitação do Cristo Virgem. E sobre este ideal o bispo de Milão falava tão bem e com um magnetismo de tal modo encantador que os pais milaneses trancavam suas filhas em casa quando o santo pregava. Diziam eles: «não queremos que vocês ouçam aquele feiticeiro».
À luz desta realidade de uma castidade que é superabundância, porque a vida deste homem Jesus, o eterno Verbo do Pai, foi uma superabundância, é preciso que os cristãos vivam com coragem a própria oferta de vida, como homens e mulheres que acreditam na proposta de Deus, caminho seguro de felicidade exigente e amor que se lança para o sem limites da eternidade da Trindade.
[1] Hb 10, 5.
[2] 1Jo 1, 1.3.
[3] Jo 1, 14.
[4] Lc 22, 19.
* Cf. 1Cor 3,16; 6,19).
[5] R. CANTALAMESSA, O Canto do Espírito. Meditações sobre o Veni Creator, Petrópolis: Vozes, 1998, p. 279.
[6] A. MOSER, Integração afetiva e compromisso social na América Latina, Rio de Janeiro: Publicações CRB, 1989, p. 45.
[7] Gn 1, 27.
[8] Cf. MOSER, Integração afetiva, 53.
[9] CIC (Catecismo da Igreja Católica), 2337.
[10] Cf. Jo 15, 16.
[11]S. AMBRÓSIO, De viduis, c. 12, n. 72; S. CIPRIANO, De habitu virginum, c. 23.