“Deus modelou o homem com as próprias mãos (…) e imprimiu na carne modelada sua própria forma, de modo que até o que fosse visível tivesse a forma divina”. CIC § 704
“Teologia do Corpo” é o título que papa João Paulo II deu ao primeiro grande projeto de ensino de seu pontificado. Em 129 pequenas palestras, pronunciadas entre setembro de 1979 e novembro de 1984, ofereceu à Igreja e ao mundo uma valiosa reflexão bíblica sobre o sentido da corporeidade humana, em especial sobre a sexualidade e o desejo erótico.
O teólogo católico George Weigel descreve esta teologia do corpo como “uma das mais ousadas reconfigurações da teologia católica dos últimos tempos” (…), “algo como uma bomba-relógio teológica, programada para detonar com dramáticas consequências (…) talvez no século 21″. Esta visão nova do amor sexual “apenas começou a tocar a teologia da Igreja, a pregação e a educação religiosa”. Quando, porém, ela se impuser plenamente – prenuncia Weigel- “produzirá um dramático desenvolvimento no modo de pensar, virtualmente, sobre todos os temas importantes do Credo” (WH pp. 336, 343, 853).
DEUS, SEXO E SENTIDO DA VIDA
Por que a reflexão do Papa sobre o amor sexual iria afetar “todos os ternas importantes do Credo?” Porque sexo não é apenas sexo. A maneira corno entendemos e expressamos nossa sexualidade revela as nossas convicções mais profundas sobre quem somos, quem é Deus, o significado do amor, da organização da sociedade e até do universo. Por isso a teologia do corpo de João Paulo II representa muito mais que urna reflexão sobre o sexo e o amor conjugal. Através da objetiva do matrimônio e da união “numa só carne” dos cônjuges – diz o Papa -, descobrimos “o sentido de toda existência, o sentido da vida” (29/10/1980)1.
E o sentido da vida, segundo Cristo, é amar como ele ama (cf. Jo 15,12). Uma das intuições mais importantes do Papa é o de ter Deus gravado esta vocação de amar como ele ama em nossos corpos, ao nos criar homem e mulher e chamando-nos a ser “uma só carne” (d. Gn 2, 24). Muito mais que uma simples nota de rodapé da vida cristã, a maneira como entendemos o corpo e o relacionamento sexual “abarca toda a Bíblia” (13.01.1982). Ela nos imerge na “perspectiva de todo o Evangelho, de todo o ensinamento, de toda a missão de Cristo” (03.12.1980).
A missão de Cristo é restaurar a ordem do amor num mundo seriamente corrompido pelo pecado. E, corno sempre, a união dos sexos encontra-se na base da humana “ordem do amor”. Portanto, o que aprendemos na teologia do corpo apresentada pelo Papa é muito “importante para o matrimônio e a vocação cristã dos esposos e das esposas”. Não obstante, “é igualmente essencial e valioso para a compreensão do homem em geral: para a compreensão fundamental de si mesmo e da sua existência no mundo” (15.12.1982).
Não admira que tenhamos tanto interesse pelo sexo. A união do homem com a mulher é um “grande mistério” que nos leva – se não nos desviarmos do caminho em nossa jornada exploratória – ao âmago do plano de Deus em relação ao universo (cf. Ef 5, 31-32).
O CRISTIANISMO NÃO REJEITA O CORPO
Na área da religião, as pessoas estão habituadas com a ênfase no campo espiritual. Daqui porque muitos sentem-se até desconfortáveis diante do relevo que às vezes se dá ao corpo. Mas, para João Paulo II, esta é uma separação artificial. O espírito, claro, tem prioridade sobre a matéria. No entanto, o Catecismo da Igreja Católica ensina que” sendo o homem um ser ao mesmo tempo corporal e espiritual, exprime e percebe as realidades espirituais através de sinais e de símbolos materiais” (n. 1146).
Como criaturas corporais que somos, esta é, em certo sentido, a única via pela qual nos é dado experimentar o mundo espiritual: no mundo físico e através dele, em nosso corpo e através dele. Deus, ao assumir um corpo na Encarnação, é justamente aqui que, com toda a humildade, se encontra conosco, isto é, em nosso estado físico e humano.
Tragicamente, muitos cristãos crescem pensando que seus corpos (especialmente sua sexualidade) são obstáculos inerentes à vida espiritual. Acham que a doutrina cristã considera a alma como “boa”, e o corpo como” ruim”. Ora, esta maneira de pensar está longe da autêntica perspectiva cristã! A ideia de o corpo ser mau é uma heresia (um erro aberrante, explicitamente condenado pela Igreja) conhecida com o nome de Maniqueísmo.
A denominação vem de Mani ou Maniqueu, criador de uma seita baseada num dualismo, em que corpo e alma estão engajados numa luta sem tréguas entre si. Segundo eles, o corpo e tudo o que fosse ligado à sexualidade devia ser condenado como fonte de mal. Nós, entretanto, como cristãos, cremos que tudo quanto Deus criou é “muito bom”, conforme nos garante a Bíblia (d. Gn 1,31). João Paulo II resumiu assim a distinção essencial: se a mentalidade maniqueísta considera o corpo e a sexualidade um “antivalor”, o cristianismo ensina que eles “constituem um ‘valor que nunca chegaremos a apreciar suficientemente’” (22.10.1980).
Noutras palavras, se o Maniqueísmo afirma que “o corpo é mau”, o Cristianismo responde que, ao contrário, ele “é tão bom que somos incapazes de avaliar toda a sua bondade”.
Então, o problema da nossa cultura saturada de sexo não é propriamente a supervalorização do corpo e do sexo. O problema está em termos falhado na compreensão de quanto o corpo e o sexo são realmente valiosos. O cristianismo não rejeita o corpo! Numa espécie de “ode à carne”, o Catecismo proclama: ”’A carne é o eixo da salvação’. Cremos em Deus que é o criador da carne. Cremos na Palavra feita carne para redimir a carne. Cremos na ressurreição da carne, na consumação da criação e na redenção da carne” (CIC 1015, ênfase do autor).
A SACRAMENTALIDADE DO CORPO
A fé católica – se o leitor ainda não se deu conta – é uma religião bem carnal, sensual. Encontramos Deus mais intimamente através de nossos sentidos corporais e de “tudo” o que constitui o mundo material: banhando o corpo com água, no batismo; ungindo-o com óleo no batismo, na crisma, nas ordens sagradas, na unção dos enfermos; comendo o corpo de Cristo e bebendo seu sangue na Eucaristia; impondo as mãos nas ordens sagradas e na unção dos enfermos; declarando os pecados com nossa boca na confissão, e unindo indissoluvelmente o homem com a mulher em “uma só carne”, no matrimônio.
De que melhor maneira podemos descrever o “grande mistério” dos sacramentos senão dizendo que eles são os meios materiais, através dos quais alcançamos os tesouros espirituais de Deus? Nos sacramentos, o espírito e a matéria como que “se beijam”. O céu e a terra se abraçam numa união sem fim.
O próprio corpo humano, em certo sentido, é um “sacramento”. Usamos aqui a palavra num sentido mais amplo e mais antigo que aquele que estamos habituados a ouvir. Mais do que referir-se aos sete sinais da graça instituídos por Cristo, João Paulo II, ao falar no corpo como um “sacramento”, quer dizer que ele é um sinal que torna visível o mistério invisível de Deus. Nós não podemos ver Deus, que é puro espírito. No entanto, o cristianismo é a religião do Deus que se manifesta. Deus quer revelar-se a nós. Ele quer tornar visível a todos o seu ministério espiritual invisível, de forma a podermos “vê-lo”. Como faz isto?
Quem de nós não experimentou ainda um profundo sentimento de pasmo, de admiração, ao contemplar uma noite estrelada, ou um magnífico pôr-do-sol, ou a delicadeza de uma flor? Em tais momentos estamos, de certo modo, “contemplando a Deus”. Ou, mais exatamente, vendo seu reflexo. Sim, porque “a beleza da criação reflete a beleza infinita do Criador” (CIC n. 341). E, contudo, quem é a coroa da criação? Quem, com mais eloquência que as outras criaturas de Deus, “fala” na beleza divina? A resposta é: o homem e a mulher e o seu chamado a uma comunhão fecunda. “Deus criou o ser humano à sua imagem. À imagem de Deus o criou. Homem e mulher ele os criou. Deus os abençoou e disse: ‘Sede fecundos e multiplicai-vos’” (…) (Gn 1,27-28).
1 As citações tiradas da “Teologia do Corpo” de João Paulo II são indicadas pela data em que foi proferida a palestra.
West, Christopher. Teologia do Corpo para principiantes, Uma introdução básica à Revolução Sexual por João Paulo II.Trad. Cláudio A. Cassola. Ed.Myrian: Porto Alegre,2008.