Os resultados da última eleição brasileira foram analisados em letras, números e gráficos por jornalistas, comentaristas, editorialistas, cientistas políticos e outros. Os vários aspectos do pleito foram virados e revirados de modo a formar por vezes uma unidade orgânica, outras vezes um aranzel inextricável.
Entretanto alguns fatores, se não estiveram inteiramente ausentes dos comentários, ficaram ao menos na sombra. E como tais fatores são decisivos para se compreender o resultado das eleições, é necessário pô-los em realce, sob pena de vermos de modo estrábico o que de fato ocorreu naqueles dias atribulados da campanha eleitoral, como também o seu desfecho.I
Influência católica nas mentalidades
As estatísticas falam por si
A mídia e os institutos de pesquisa timbram de modo geral em pôr ao alcance de seus leitores dados que mostram a decadência da prática e sentimento católicos na população. Estatísticas que apontavam o Brasil com mais de 90% de católicos, na década de 1950, hoje nos dizem melancolicamente que essa porcentagem caiu a 70%, ou talvez menos.
De um lado não há como negar essa realidade, mesmo porque muitos católicos, não encontrando mais na pregação de sacerdotes aggiornati o pão da verdadeira doutrina tradicional, procuram refúgio, ainda que equivocadamente, em seitas protestantes e outras.
Mas de outro lado o resultado das pesquisas e conseqüente propaganda midiática, mesmo quando verdadeiro, limita-se à superfície da realidade. Séculos de doutrina e moral católicas influenciaram beneficamente o Brasil, modelando a fundo as mentalidades e os hábitos da população. A tal ponto que mesmo os que se dizem não-católicos ou não-praticantes pensam e agem de fato, em não poucas circunstâncias, como a Igreja lhes ensinou.
Também nesse aspecto mais profundo das mentalidades a corrosão secularista se faz sentir, e disso não devemos ter ilusões. Mas o processo aqui é mais lento e menos abrangente do que na superfície, de tal modo que coágulos de catolicidade e bom senso permanecem com maior ou menor intensidade nas almas, dependendo do indivíduo, das famílias, da região. Só muito lentamente eles vão se dissolvendo pela ação secular, ao longo dos anos, das décadas, quiçá dos séculos.
Rejeição ao aborto: bandeira de uma luta mais vasta
Nessas circunstâncias , se algumas vozes se levantam – com autenticidade, e por vezes também com autoridade – para defender um ou mais pontos da verdade que estava sendo corroída, pode produzir-se de repente um sobressalto salutar nas almas que estavam sendo trabalhadas pelo adormecimento. Conforme o caso, tal sobressalto pode reavivar fibras que se diria mortas, ou pelo menos em adiantado estágio de liquefação mórbida. Então o doente adquire laivos de sanidade, o catacego começa a ver nitidamente, e o sonolento pode mudar toda uma situação que parecia inamovível.(1)
A questão do aborto emergiu contra as expectativas da esquerda
Muito disto pudemos presenciar durante a última campanha eleitoral. Ante uma certeza de vitória da candidata Dilma Rousseff no primeiro turno, o combate ao crime do aborto foi o catalisador em torno do qual se reuniram as reações mais fortes e mais sadias às pretensões da petista.
Mas não foi só a defesa da vida. Conforme observou com sagacidade e profundidade o filósofo Vladimir Saflate, professor da Universidade de São Paulo (USP), “a candidatura Serra começou a crescer de verdade quando o Serra resolveu flertar com setores conservadores da sociedade brasileira,– teve votação expressiva no chamado cinturão do agronegócio – e também com a fina flor do pensamento conservador. […] Mostrou uma coisa que a gente não sabia: existe um pensamento conservador forte no Brasil e esse pensamento tem voto. Pode ser mobilizado por questões relativas à modernização dos costumes. […] Serra destampou uma franja eleitoral que estará presente no debate nos próximos quatro anos. Esse tipo de pauta não vai desaparecer. […] Até porque existe uma tendência mundial de construir um pensamento conservador que tem forte densidade eleitoral. A gente vê isso nos EUA, na Europa e vai ver no Brasil de uma maneira ou de outra. […] Não foi simplesmente uma questão ligada ao aborto. Foi uma maneira que o pensamento conservador encontrou de pautar a agenda do debate político neste país”.(2)
Ou seja, o combate ao aborto foi a bandeira que simbolizou e compendiou uma luta mais vasta contra o “casamento” homossexual, contra a adoção de crianças inocentes por “casais” constituídos de modo anti-natural, contra a eutanásia, contra as invasões de terras e de prédios, em defesa da propriedade privada, em favor das liberdades individuais legítimas. Numa palavra, contra o malfadado Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3) do governo Lula.
Com muita propriedade, afirmou em artigo para a “Folha de S. Paulo” o Príncipe D. Bertrand de Orleans e Bragança: “O tema do aborto despontou com ímpeto chamativo. Mas foi a panóplia de metas radicais do PNDH-3 (Plano Nacional de Direitos Humanos) o que maior apreensão causou em vastos setores da sociedade”.(3)
Clérigos e leigos se opuseram com valor
Esta luta teve figuras proeminentes como D. Aldo Pagoto, Arcebispo da Paraíba, D. Luiz Gonzaga Bergonzini, Bispo de Guarulhos, D. Benedito Beni dos Santos, Bispo de Lorena, sem falar de ainda outros bispos e diversos sacerdotes que fizeram pronunciamentos corajosos e incisivos. Por mais que essas personalidades eclesiásticas tenham tido uma atuação digna de louvor – e elas a tiveram –, por si sós não teriam conseguido mudar o ambiente eleitoral, não fosse uma verdadeira avalanche de oposição que se levantou também entre os leigos.
Tal oposição brotou do fundo de uma opinião pública contrariada, à qual há muito tempo vinha sendo negado pão e água. Contrariada sim, por não se ver representada em nenhum dos postulantes ao principal posto político da Nação.
Essa situação tão inesperada para os partidos políticos, especialmente para o PT, não só levou a decisão eleitoral para o segundo turno, como pôs em grave risco a vitória de Dilma Rousseff. O fato é confessado sem rebuços pelo próprio presidente do PT, José Eduardo Dutra, o qual “admitiu ao Estado que o PT temeu uma derrota na primeira semana do segundo turno, quando as pesquisas internas mostravam uma diferença de apenas cinco pontos porcentuais entre Dilma e José Serra”.(4)
Diante de uma opinião pública em grande parte inconformada com os rumos esquerdistas dos candidatos, tanto Dilma Rousseff quanto José Serra viram-se obrigados a revestir-se de aparências de devoção, na tentativa de capitalizar a forte corrente de opinião que eles de nenhum modo representavam. O eleitorado se vingava, pelo fato de não haver nenhum candidato conservador que espelhasse seus sentimentos e inclinações,(5) e os candidatos reagiram com uma farsa. Dilma Rousseff, tida como mais favorável do que José Serra ao aborto e às demais medidas do PNDH-3, foi a mais visada pelos anti-abortistas.
A campanha anêmica de Serra e o pronunciamento do Papa
Nesse clima, em que uma virada eleitoral parecia provável ou pelo menos francamente possível, aconteceu o inesperado. A campanha de José Serra, em lugar de avançar, recuou, desbotou-se, ficou ainda mais morna, mais anêmica, não aproveitou os temas que o eleitorado lhe oferecia de bandeja. É como se ele estivesse desinteressado de vencer.(6)
A essa altura deu-se um fato de grande porte que poderia ter mudado completamente o jogo eleitoral, se aproveitado convenientemente pela oposição. Referimo-nos ao pronunciamento do Papa Bento XVI, que inequivocamente se aplicava à situação então vivida pela Nação. Falando aos bispos brasileiros da Regional Nordeste 5 (Maranhão), reunidos em Roma em visita ad limina apostolorum em 28 de outubro, assim se expressou o Pontífice (excertos):
“Quando os direitos fundamentais da pessoa ou a salvação das almas o exigirem, os pastores têm o grave dever de emitir um juízo moral, mesmo em matérias políticas. […] Seria totalmente falsa e ilusória qualquer defesa dos direitos humanos políticos, econômicos e sociais que não compreendesse a enérgica defesa do direito à vida desde a concepção até à morte natural. […]
“Quando os projetos políticos contemplam, aberta ou veladamente, a descriminalização do aborto ou da eutanásia, o ideal democrático – que só é verdadeiramente tal quando reconhece e tutela a dignidade de toda a pessoa humana – é atraiçoado nas suas bases (cf. Evangelium vitæ, 74). Portanto, caros Irmãos no episcopado, ao defender a vida ‘não devemos temer a oposição e a impopularidade, recusando qualquer compromisso e ambigüidade que nos conformem com a mentalidade deste mundo’ (ibidem, 82). […]
“Em determinadas ocasiões, os pastores devem mesmo lembrar a todos os cidadãos o direito, que é também um dever, de usar livremente o próprio voto para a promoção do bem comum (cf. GS, 75). Neste ponto, política e fé se tocam. […] Deus deve ‘encontrar lugar também na esfera pública, nomeadamente nas dimensões cultural, social, econômica e particularmente política’ (Caritas in veritate, 56)”.(7)
PT se esforça por esvaziar a repercussão das palavras do Papa
Houve quem lamentasse o fato de o pronunciamento papal não ter vindo com maior antecedência: “O discurso do Papa Bento 16 só iria fazer eco se fosse feito duas semanas atrás”, comentou na ocasião o missivista Eduardo Ramirez.(8)
Pode-se pensar assim. Porém é certo que, mesmo com um prazo exíguo, se a oposição tivesse dado de imediato ampla repercussão e irrestrito apoio ao pronunciamento papal, poderia ter contribuído decisivamente para a reviravolta eleitoral, pois ele condizia com os aspectos mais profundos e mais negados da opinião pública nacional. Ao contrário disso, o candidato oposicionista tratou pouco e desbotadamente das palavras de Bento XVI, nem sequer citando-as no último debate televisivo com Dilma Rousseff. Por que isso? É um mistério a ser desvendado.
O PT entendeu melhor o risco que trazia para sua candidata tal pronunciamento. Não podendo contestá-lo, porque seria um suicídio eleitoral, procurou esvaziá-lo de significado o quanto pôde. Assim, comentou o Presidente Lula: “Eu não vi nenhuma novidade na declaração do Papa. Esse é o comportamento da Igreja Católica desde que ela existe. Isso pode ser falado a qualquer momento, ontem, hoje, amanhã, depois de amanhã. Toda vez que você perguntar ao papa sobre a questão do aborto, ele vai dizer exatamente o que disse ontem”.(9) Seguindo o mesmo diapasão, a então candidata Dilma Rousseff disse apenas que a fala do Papa tem de ser respeitada: “Ele tem o direito de se manifestar”.(10) Não podia dizer menos. Era só o que faltava ela negar ao Papa o direito de se manifestar!
Divisão no Episcopado sobre aplicação das palavras de Bento XVI
O mais surpreendente foi que também a CNBB, da qual se deveria esperar que ecoasse fortemente as palavras do Papa, pelo contrário procurou minimalizá-las. Para começar, oficialmente a CNBB “não se pronunciou sobre o assunto”.(11). Alguns de seus membros mais representativos o fizeram. Vejamos o que disseram:(12)
O vice-presidente da entidade, D. Luiz Soares Vieira, “afirmou em entrevista à Rádio Vaticano, em Roma, que a Igreja já está cumprindo a orientação dada pelo papa Bento XVI: ‘A Igreja não tem posição partidária e o papa não está dizendo que se deve votar em um ou em outro candidato’, observou D. Luiz Vieira, acrescentando que, ‘como os dois candidatos (Dilma Rousseff e José Serra) têm praticamente a mesma posição diante do aborto, é complicado fazer a escolha’”.
Para o bispo de Limeira, D. Vilson Dias de Oliveira, porta-voz do Regional Sul 1 da CNBB, “não se trata de fazer uma cruzada na véspera e no dia das eleições, porque não é disso que o papa está falando. Estamos seguindo a orientação do papa, porque já vínhamos trabalhando na conscientização dos eleitores, sem apontar nomes de partidos ou de candidatos”.
O bispo de Jales, D. Demétrio Valentini, disse que “se deve evitar a tentação de achar que o papa está interferindo na política brasileira. O bom da democracia é cada um poder votar de acordo com a sua consciência”.
Ou seja, para esses representantes da CNBB, a orientação do Papa não trazia nada de novo e não deveria influir nas eleições. Com outras palavras, é a mesma posição do presidente Lula. Uma tão clara condenação do Papa ao aborto, uma defesa tão contundente do dever dos bispos de emitir juízos morais em matérias políticas, uma insistência sobre a necessidade de usar o voto para promover o bem comum – tudo isso parece não significar nada de especial para a CNBB.
Não estranha, pois, ser já considerável o número de bispos que não mais se sentem obrigados a seguir a orientação desse colegiado episcopal em diversas matérias. A divisão na CNBB se afigura irreversível: “Polêmica do aborto faz bispos racharem – Seja qual for o resultado no 2º turno, discussão deixará seqüelas na Igreja e poderá ter reflexos na eleição da CNBB”.(13)
Alguns pronunciamentos episcopais parecem até um escárnio à inteligência dos brasileiros, como o do Bispo de Caçador (SC), D. Luiz Carlos Eccel, que declarou em nota oficial publicada no site de sua diocese em 29-10-10: “Como Bispo da Igreja Católica, e como cidadão brasileiro, fico feliz por saber que nosso Presidente tem defendido a vida, e sempre se pronunciou contra o aborto. […] Nosso país está em pleno desenvolvimento e assim queremos continuar e, depois de 500 anos, nosso povo quer eleger, pela primeira vez, uma mulher que tem compromisso com a vida e provou isso com sua própria vida. […] Obrigado Santo Padre por suas sábias palavras! A Dilma é a resposta para as nossas inquietações a respeito da vida”.
A maioria do eleitorado não votou na candidata do PT
Outro ponto fundamental, não realçado pela mídia ao comentar o resultado do segundo turno das eleições, é o fato de que considerável maioria dos eleitores brasileiros não votou em Dilma Rousseff. A imprensa destacou que a candidata petista obteve 55.752.529 votos, equivalentes a 56,05% dos votos válidos. Correto. Acontece que o eleitorado brasileiro é muito maior do que a soma dos votos válidos. Ele inclui os brancos, nulos e abstenções.
O total do eleitorado é de 135.803.094. Isto significa que 80.050.565 dos brasileiros aptos a votar não votaram em Dilma Rousseff. Portanto, não votaram na candidata petista 58,9% dos eleitores, contra 41,1% que lhe deram seu voto. Ela vai governar um País em que uma boa maioria não a sufragou. Veja-se o quadro acima, elaborado segundo os dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
Voto contra-Dilma foi mais consistente do que o voto pró-Dilma
A essa consideração soma-se outra, de não menor importância. A vitória de Dilma se deveu em larga medida ao voto dos que recebem bolsa família. Já o resultado do primeiro turno mostrou essa realidade: “A candidata do PT à Presidência, Dilma Roussefff, recebeu proporcionalmente mais votos onde a cobertura do Bolsa Família é maior. Dos dez estados com maior índice de beneficiários do programa de transferência de renda, nove deram a Dilma votação suficiente para vencer já no primeiro turno. É o que mostra o cruzamento dos resultados da eleição presidencial, feito pelo GLOBO, com o endereço de quem recebe o Bolsa Família”.(14)
Como se vê, não se tratou de uma consonância ideológica com o socialismo da candidata do PT, nem com seu programa político, nem com as metas do governo. Prevaleceu simplesmente o interesse pessoal, cuja legitimidade se pode discutir no caso concreto, mas cuja realidade é inconteste.
Ora, a contrário senso, os que votaram contra Dilma Rousseff o fizeram, em larga medida, porque não concordam com seus princípios doutrinários ou morais, não apóiam seu projeto político, não confiam nas suas metas de governo e não desejam uma continuidade da administração Lula.
Portanto, a oposição (do ponto de vista da opinião pública, não dos partidos) que ela terá de enfrentar em seu governo é muito mais consistente do que o apoio; e também mais capaz de mobilização, mais consciente de suas idéias e preferências. Dilma não poderá ignorar essa circunstância fundamental, sob pena de ver repetido no Brasil o que está ocorrendo com o governo Obama nos Estados Unidos, politicamente rejeitado até mesmo por muitos dos que o elegeram.
Que Nossa Senhora Aparecida, Rainha e Padroeira do Brasil, ajude especialmente nossa Pátria nestes dias borrascosos em que vivemos.
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Notas:
1. Esta análise da opinião pública brasileira, procuramos hauri-la na escola de pensamento e ação de Plinio Corrêa de Oliveira, explicitada em várias de suas obras, particularmente no genial ensaio Revolução e Contra-Revolução.
2. Entrevista ao “Jornal Valor”, 7-11-10.
3. Insurreição Eleitoral, in “Folha de S. Paulo”, 28-10-10.
4. “Portal do Estadão”, 1°-11-10
5. Sobre essa sã oposição do eleitorado, de índole religiosa e moral, ver nosso anterior artigo “A opinião pública na gangorra da derrota ou vitória”, inCatolicismo, novembro/10.
6. Segundo “O Estado de S. Paulo” de 1-11-10, “Serra erra ao optar pelo não-confronto. […] José Serra chegou ao final da segunda campanha presidencial […] abrindo mão de se apresentar como candidato de oposição. […] Serra falando coisas que o povo não queria ouvir e não entendia”. Na mesma data, o “Portal G1” (da Globo) noticiou: “Aliados de José Serra afirmaram que a oposição precisa se reorganizar. […] O governador de São Paulo, Alberto Goldman (PSDB), afirmou que será preciso ‘fazer uma oposição com seriedade’ daqui para frente”. O jornalista Fernando Rodrigues comenta: “Toneladas de papel e hectolitros de tinta serão usados para analisar a fragilidade da oposição. Um aspecto preliminar deve ser considerado a respeito desse raquitismo: a gênese da anemia” (“Folha de S. Paulo”, 30-10-10).
7.http://press.catholica.va/news_services/bulletin/news/26281.php?index=26281&lang=po
8.http://fratresinunum.com/10/10/29/a-reacao-do-episcopado-brasileiro-ao-discurso-do-papa-bento-xvi/
9. “Yahoo”, 29-10-10.
10. “Portal do Estadão”, 28-10-10.
11. “Folha de S. Paulo”, 29-10-10.
12. “O Estado de S. Paulo”, 29-10-10.
13. “Portal do Estadão”, 17-10-10.
14. “Diário do Pará”, 14-10-10.