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“O maior perigo de uma visão da história como um progresso infindável é a combinação tóxica de arrogância e auto-ilusão”. (D.A. Carson)

Antes de começar este texto, uma pequena confissão: sou ateu. Não tenho religião e não acredito em Deus, ao menos não da forma convencional das principais religiões. Além disso, sempre valorizei o estado laico, a divisão entre estado e igreja tão cara a muitos “pais fundadores” americanos, inspirados no Iluminismo.

Dito isso, não posso ignorar que o pêndulo exagerou para o outro lado, como em quase todo o resto. O estado laico passou a se confundir com um estado antirreligioso, e a não intervenção das religiões nas questões estatais deu lugar ao excesso de intervenção do estado em assuntos religiosos.

Já mencionei em alguns textos o livro The Intolerance of Tolerance, do teólogo canadense D.A. Carson. Vou, uma vez mais, usá-lo como fonte de reflexões. Afinal, sua tese tem tudo a ver com o assunto em pauta: os “tolerantes”, em nome de sua “infinita” tolerância (na verdade, aprovação irrestrita), tornaram-se os mais intolerantes, especialmente com os religiosos.

Não é algo novo. Os jacobinos se julgavam detentores da Razão (assim mesmo, com R maiúsculo), e guilhotinaram vários padres, atacaram as igrejas e transformaram Notre Dame no “Templo da Razão”. Mexeram até no calendário. Falavam em nome da “ciência”. O resultado foi o Terror.

O mesmo para seus herdeiros bolcheviques: em nome da ciência, os ateus comunistas aboliram as religiões, e todos tiveram que aderir ao mesmo Deus: o estado. Milhões foram sacrificados no altar da utopia de um “mundo melhor” e da construção do “novo homem”: racional, abnegado, altruísta, e livre do preconceito religioso.

Pois bem: chegamos ao ponto em que o sujeito dizer “God bless you” (Deus lhe abençoe) após um espirro vira caso de justiça. Não pode haver uma cruz em locais públicos, muitos querem tirar a citação de Deus na moeda americana, nenhuma empresa pode mandar cartões com “Feliz Natal” pois pode ser ofensivo para os não crentes, e por aí vai.

A religião passou a ser vista como algo ruim, e em nome da tolerância, os “tolerantes” aceitam a liberdade religiosa, desde que restrita à esfera privada. Em outras palavras, o sujeito pode crer em Deus e em livros sagrados, mas só não pode levar suas crenças para o debate público, para a política, para sua visão moral de mundo.

Isso me parece um tanto absurdo. Afinal, de onde vem nossa moral? Ora, cada um terá uma resposta, e em tempos de relativismo moral exacerbado, vale tudo. Mas o fato é que só podemos desqualificar por completo valores morais advindos das tradições ou das religiões se assumirmos que é possível obter um código de valores morais estritamente racional, científico. Olha o perigo da Razão aí novamente, da “arrogância fatal” (Hayek), da intolerância dos “tolerantes” modernos.

Aborto, por exemplo, pode ou não pode? Alguém realmente pretende responder isso apenas com base na ciência? Boa sorte. Já vi gente inteligente chamar o feto humano de “parasita” usando exclusivamente a lógica. Como disse Karl Kraus, “Refreia as tuas paixões, mas toma cuidado para não dar rédeas soltas à tua razão”.

Os seculares assumem que sua visão moralista é superior, pois calcada na Razão, mas no fundo enfrentam dificuldades igualmente insolúveis para certos dilemas. Afinal, são dilemas morais não é à toa. Acabam sendo seletivos em sua “tolerância” ampla, adotando posturas muitas vezes contraditórias (toleram o chargista que faz desenho “ofensivo” de Maomé ou os muçulmanos intolerantes com tais charges pois não querem se sentir ofendidos?). Defendem uma agenda que se diz neutra, mas nunca o é.

Como estão convencidos de sua superioridade por conta da suposta neutralidade, tornam-se mais intolerantes com o passar do tempo. Assumem que automaticamente a postura secular garante maior tolerância, o que é uma falácia. Conheço ateus extremamente intolerantes (vide ATEA e todos os ateus militantes), e cristãos altamente tolerantes com pontos de vista divergentes.

E chegamos ao ponto central do texto: com essa convicção na própria superioridade, e com essa aversão às religiões (especialmente ao Cristianismo), os seculares acabaram criando não um estado laico, mas um estado antirreligioso sob um novo Deus, que é o próprio estado absolutista. Ele pode tudo, inclusive se intrometer nos assuntos estritamente religiosos.

Exemplo? O casamento religioso e a aceitação de padres gays deveriam ser assuntos decididos somente dentro da própria religião. O que o estado tem com isso? Se uma religião particular não quiser aceitar casamentos de homossexuais, isso não seria um direito seu? Se um bispo católico declarasse alguma pessoa impedida de receber a Comunhão em sua diocese, pelo motivo que fosse, e o estado interferisse, isso não seria uma quebra da separação entre estado e igreja? É intolerante a igreja que age assim dentro de suas próprias crenças, ou o estado que não tolera isso e invade sua liberdade para impor sua visão estreita de mundo?

Outro exemplo? Digamos que um médico cristão, que ainda por cima prestou o juramento de Hipócrates, não aceite, por crença pessoal, praticar a eutanásia ou um aborto. Será que o estado teria o direito de, em nome da “tolerância”, obrigá-lo a agir diferente, contra suas próprias convicções morais? Já há casos em países desenvolvidos, que permitem aborto e eutanásia, onde estas questões foram parar na Justiça, e a tendência é claramente contrária ao direito individual do médico. Pergunto: pode haver algo menos tolerante do que a coerção estatal impedir o direito de um médico de se recusar a “matar um bebê”, sendo esta sua crença mais íntima?

São questões, como podemos ver, bastante delicadas, complexas, que envolvem valores e direitos conflitantes. Haverá uma região cinzenta, principalmente quando crianças estiverem no meio. Pode um pai muçulmano, em pleno Ocidente, impor o uso da burca à sua filha, ou seu direito individual deve falar mais alto? Pode um pai se recusar a aceitar transfusão de sangue para a filha, pois ela é Testemunha de Jeová? E por aí vai.

Teremos, sem dúvida, uma enorme quantidade de casos sem resposta fácil. Mas o que eu gostaria de chamar a atenção, aqui, é dessa tendência cada vez mais intolerante dos modelos seculares, que parecem desejar varrer a religião do mapa, ou ao menos para um cantinho isolado e insignificante da individualidade do sujeito, sem levar em conta que essa crença pode, para ele, ser a coisa mais relevante do mundo, e que ele tem o direito de levar seus valores para o debate no espaço público.

Então, quem é o tolerante e o intolerante nessa confusão toda?

Rodrigo Constantino