O Pe. Julián Carrón, presidente do movimento Comunhão e Libertação, é a favor da diminuição da ênfase sobre as guerras culturais, não porque as posturas tradicionais da Igreja estão erradas, mas porque começar com a ética sempre foi o modo errôneo de apresentar o cristianismo ao mundo.
Uma das questões mais difíceis que os cristãos ocidentais enfrentam neste começo de século XXI é sobre se – e como – a Igreja deveria continuar combatendo nas guerras culturais.
Existe uma corrente de pensamento segundo a qual a Igreja deveria se retirar do campo de batalha porque, em muitos temas, como a contracepção e as mulheres, “ela esteve do lado errado”. Para alguns, como Rod Dreher e sua defesa de uma “opção Bento”, dizem que a Igreja deveria se retirar, pois já perdeu a batalha, e que tudo o que pode esperar, dentro desta cultura, é manter vivas as “pequenas ilhas da fé”.
Com efeito, o Pe. Julián Carrón, presidente do influente movimento católico Comunhão e Libertação, representa uma postura neste debate: tirar a ênfase sobre as guerras culturais. Na entrevista a seguir, Carrón sustenta que não é que as posturas tradicionais da Igreja estejam equivocadas, ou que a batalha já acabou.
Diferentemente, é porque começar com a ética sempre foi o modo equivocado de apresentar o cristianismo ao mundo, que, em seu cerne, é um “evento” – palavra que pode parecer banal, mas que no vocabulário do movimento que deriva de seu fundador, o padre italiano Luigi Giussani, é rica de significado.
“A fé como um evento significa que a vida de uma pessoa se transforma quando ela encontra um fato, como o que aconteceu a João e André, quando encontraram Jesus”, contou ele ao Crux no domingo. “Não se pode negar a realidade do que aconteceu, não se pode desfazê-la. É como São Paulo, que ao perseguir os cristãos, tentando destruí-los, encontrou o Cristo vivo e isso revolucionou o seu pensar”.
“A escolha não pode se resumir às guerras culturais ou a um cristianismo esvaziado de conteúdo, porque nenhuma destas opções tem a ver com Abraão e com a história de salvação”, disse Carrón. “Abraão foi escolhido por Deus para começar a introduzir, na história, uma nova maneira de viver a vida, que poderia lentamente começar a gerar uma realidade externa com a capacidade de dignificar a vida, de torná-la plena”.
Carrón foi entrevistado em sua residência em Milão. Entre outras coisas, falou sobre o lançamento recente de seu livro em inglês intitulado “Disarming Beauty”, sobre como apresentar o “evento” cristão na cultura pós-moderna e secular do Ocidente.
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Recentemente Rod Dreher defendeu a ideia de que os cristãos deveriam se retirar das guerras culturais nos países ocidentais porque nós já as perdemos, e tudo o que podemos esperar é a “opção Bento”, ou seja, preservar criativamente pequenas “ilhas da fé” em meio a uma cultura decadente e hostil. O senhor também parece estar dizendo que devemos superar as guerras culturais, mas por um motivo diferente.
Com certeza [devemos superar as guerras culturais]. Sempre me surpreende a contraposição entre tentar tornar o cristianismo uma religião civil, de um lado, e, de outro, tentar torná-lo uma religião inteiramente privada. Para mim, isso é como tentar alterar o projeto de Deus. Eu me pergunto: Quem teria apostado que Deus começaria a estender sua mão ao mundo chamando a Abraão? Foi o modo mais improvável, mais confuso de fazê-lo que alguém poderia imaginar.
A escolha não pode se resumir às guerras culturais ou a um cristianismo esvaziado de conteúdo, porque nenhuma destas opções tem a ver com Abraão e com a história de salvação. Abraão foi escolhido por Deus para começar a introduzir, na história, uma nova maneira de viver a vida, que poderia lentamente começar a gerar uma realidade externa com a capacidade de dignificar a vida, de torná-la plena.
Imagino que se Abraão estivesse aqui hoje, em nossa situação minoritária, e se dirigisse a Deus para dizer que “ninguém está prestando atenção em mim”, o que Deus teria dito? Sabemos muito bem o que ele diria: “É por isso que o escolhi, para começar a trazer à realidade um comportamento significativo, mesmo se ninguém acreditar nele; (…) farei de vocês um povo tão numeroso que seus descendentes serão como estrelas no céu”.
Quando enviou o seu filho ao mundo, despojado de seu poder divino para se tornar homem, Deus fez a mesma coisa. É como disse São Paulo: ele veio para nos dar a capacidade de viver a vida de um jeito novo. É isso o que gera uma cultura. A questão é se a situação em que estamos hoje nos dá a oportunidade de recuperar as origens do projeto de Deus.
O senhor parece bastante otimista de que algo assim ainda é possível.
Sim, absolutamente. Sou completamente otimista, por causa da natureza da fé em si. Sou otimista com base na natureza da experiência cristã. Isso não depende da minha leitura das coisas, do diagnóstico que faço da situação sociológica. O problema é que, para sermos capazes de começar de novo a partir deste ponto de partida absolutamente original, temos de voltar às raízes da própria fé, naquilo que Jesus dizia e fazia.
Se há um motivo para o pessimismo, ele é o de que, muitas vezes, nós reduzimos o cristianismo ou a uma série de valores, uma ética, ou simplesmente a um discurso filosófico. Isso não atrai, não tem o poder de seduzir. As pessoas não sentem a força de atração do cristianismo. Mas exatamente porque a situação que vivemos hoje é tão dramática, de todos os pontos de vista, torna-se paradoxalmente mais fácil difundir a novidade do cristianismo.
Se olharmos a Europa, hoje, há uma nova geração a amadurecer que, realmente, não investe nas velhas batalhas da religião x secularidade, porque foram criados numa cultura amplamente pós-religiosa e, portanto, muitas vezes olham para elas não com animosidade, mas com curiosidade. Isto cria um momento novo para a evangelização?
Sim, existe um momento novo. A questão é se os cristãos podem tirar proveito desta oportunidade para compreender, nós mesmos, o que realmente é a fé, o que significa ser cristão, pois ela deve nos interessar e irá interessar os demais. Temos que entrar aqui não nos preocupando com os números, e precisamos nos projetar unicamente para a plenitude da experiência que Cristo representa em nossas vidas.
Lembro uma expressão que Giussani frequentemente usava ao falar da fé: “A fé é uma experiência presente, onde tenho, em minha própria experiência pessoal, a confirmação da adequação humana da fé”. Sem isso, a fé não será capaz de resistir a um mundo em que todas as coisas dizem o contrário.
Então a sua estratégia de evangelização para o começo do século XXI é viver a fé de um modo tal que esta “experiência da confirmação” aconteça e, em seguida, aos poucos, apresente aos outros este modo de viver?
Quando um cristão vive a fé com essa alegria, com essa plenitude, fica evidente que quando ele, ou ela, vai trabalhar, ou sair com os amigos, ou quando está no aeroporto, os demais verão esta novidade nele/a. Se chegamos às 8 horas na empresa onde trabalhamos e vamos ao chão de fábrica, e aí encontramos um colega que está cantando, nos abraça e divide conosco as nossas fraquezas e dificuldades, iremos perguntar: “O que há com você, que chega ao trabalho cantando às 8 horas da minhã?”
Isso leva a mensagem cristã muito mais adiante do que tantas outras coisas, muito mais adiante do que todos estes argumentos éticos, porque, quando vemos alguém assim, naturalmente queremos perguntar: “De onde vem essa alegria? De onde vem esta plenitude de vida?” As pessoas podem não achar imediatamente que a origem ulterior desta felicidade se chama Jesus Cristo, se chama fé. Mas quando começar a entender que esta maneira estupefata de viver no mundo real, tão feliz, tão alegre, origina-se na fé, começarão a se interessar.
Em uma só palavra: comunica-se o cristianismo vivendo-o. [O poeta T.S.] Eliot certa vez se perguntou: “Onde está a vida que perdemos ao viver?” Para nós, é o contrário (…) ganhamos vida ao viver na fé. Se não for assim, não iremos interessar a ninguém, inclusive nós mesmos. Dito de outra forma: a Igreja reprovou a humanidade, ou a humanidade reprovou a Igreja?
Lançar não uma série de doutrinas, mas um modo de vida?
É uma experiência de vida.
O Papa Francisco fala muito sobre criar uma “cultura do encontro” e, claro, “encontro” foi também um conceito central para Giussani. Olhando a Igreja hoje, que exemplos de “cultura do encontro” mais o impressionam?
Sempre fico impressionado com os exemplos de criação de espaços de encontro entre pessoas completamente diferentes. Por exemplo, nós [do movimento Comunhão e Libertação] temos aqui, em Milão, um programa complementar às aulas, um centro, onde um grupo de professores – alguns deles pertencem ao movimento, outros não – oferta o seu tempo livre para ajudar as crianças com problemas na escola.
Aí estão italianos, imigrantes, membros de religiões diferentes, a maioria católicos e muçulmanos, e vemos neste ambiente um lugar de encontro. Essas pessoas vêm de situações muito diferentes, e aí podem encontrar um lugar onde sua humanidade renasce.
Certa vez, uma criança apareceu com um canivete em sua mochila, e sob circunstâncias diferentes ele poderia acabar se tornando um terrorista. Mas, ao passar um tempo com estas pessoas, desfez-se de toda a sua agressividade e se tornou, mais tarde, exemplo de transformação. Eis o poder do encontro.
E quanto a exemplos fora de seu próprio movimento?
Bem, eu não conheço o mundo inteiro, evidentemente, mas posso exemplificar. Por exemplo, venho e vou a diferentes paróquias de Roma e, às vezes, de Milão, e podemos ver este espírito do encontro vivo nelas. Conheço um padre aqui em Milão que tem uma relação ímpar com os paroquianos. Ele tem uma capacidade fantástica e se engaja na vida dos fiéis, de um modo que os auxilia na reconstrução da vida.
No Brasil, há a experiência da APAC [Associação de Proteção e Assistência aos Condenados], uma rede penitenciária sem guardas e sem armas, e onde o índice de reincidência – aproximadamente 80% nas prisões comuns – cai para 15%. Podemos pensar que é uma ilusão, que o que acontece é que estão, na verdade, incentivando a criminalidade. Mas, pelo contrário, é um exemplo do que acontece quando há um encontro real. Tudo o que se atravessa no caminho da humanidade verdadeira, mais cedo ou mais tarde, cai por terra.
Por exemplo, havia um prisioneiro que fugiu de várias cadeias diferentes e que acabou em uma dessas unidades. Ele não tentou mais escapar. Um juiz, impressionado com essa história, foi até a prisão perguntar: “Por que não tentou escapar?” O prisioneiro respondeu: “Não podemos nos afastar do amor”.
O nosso problema é que às vezes não acreditamos em certas coisas mais. Praticamente pensamos que qualquer outra solução, conquanto violenta, é mais eficaz do que o poder do amor.
Está dizendo que, no fim, o nosso “realismo” não é, na verdade, tão realista.
Isso está claro. Temos como dado que certas coisas são ilusões, e pomos de lado a única chance de penetrar verdadeiramente no coração das pessoas. De novo, é isso o que me faz otimista – a fé funciona!
Como disse anos atrás o Papa Bento: Há ainda uma chance para o cristianismo, hoje, neste mundo? Ele diz que sim, porque o coração da pessoa humana necessita de algo que somente Cristo pode dar. Essa capacidade de corresponder ao que as pessoas estão procurando verdadeiramente é o que sempre o torna atraente.
O senhor também parece dizer que precisamos ser audaciosos, não temer desafiar a sabedoria convencional neste mundo.
O que não podemos ter é um cristianismo reduzido, ambíguo, achando que essa é a forma nos encontrar com as pessoas. Não, nós precisamos vivê-lo com audácia, plenamente. Temos de nos convencer, com a mesma audácia de Jesus ao entrar na casa de Zaqueu, de forma alguma ignorando as coisas que ele fez, mas desarmados, respondendo ao que estava em seu coração. Historicamente, temos aqui um método absolutamente novo. Jesus surpreende a São Paulo, do mesmo modo como nos surpreende.
Nada há que desafia mais o coração de uma pessoa do que um gesto assim, um gesto absolutamente surpreendente.
Um conceito-chave para Giussani, que o senhor repete em todo o seu livro, é que a fé é um “evento”. Pode explicar o que isso quer dizer e por que é importante?
A fé como um evento significa que a vida de uma pessoa se transforma quando ela encontra um fato, como o que aconteceu a João e André, quando encontraram Jesus. Não se pode evitar a realidade do que aconteceu, não se pode desfazê-la. É como São Paulo, que, ao perseguir os cristãos, tentando destruí-los, encontrou o Cristo vivo e isso revolucionou o seu pensar.
É como aquela cena no romance de Manzoni, intitulado “I promessi sposi”. A experiência de encontrar alguém tão pronto a perdoar foi tão surpreendente que foi impossível não se render ao seu poder de atração. Quando o cardeal cumprimenta o bandido, dizendo: “Quando irei voltar? Mesmo se você negar me ver, irei aparecer aqui à sua porta, obstinadamente, como um pobre mendigo que precisa vê-lo novamente”.
Esse é o tipo de experiência chocante que transforma uma vida, e isso é fé.
O Papa Bento sempre disse que, nas origens do cristianismo, ele não era uma doutrina, não era um ensinamento, mas um encontro com Cristo. A forma do “evento” cristão é este encontro, não de um modo virtual ou como um propósito que se faz. Não. Trata-se de um encontro tão poderoso que não se quer deixar de tê-lo para o resto de nossas vidas.
O objetivo de seu livro é despertar a consciência deste evento?
Com certeza. O problema é como levar esse evento às pessoas. É como a experiência do amor, do se apaixonar… Não acontece por falarmos sobre o assunto, mas por realmente se apaixonar.
A certa altura, o senhor escreve que a finalidade da comunidade, ou seja, a Comunhão e Libertação, mas também da Igreja em geral, é gerar “adultos na fé”. O que quer dizer com isso?
Quero dizer das pessoas que se regeneram ao participar na comunidade cristã, no sentido que elas têm uma nova capacidade de compreender a realidade, uma nova capacidade ser livres, e uma nova capacidade de transmitir um sentido de reverência aos demais. Se o cristianismo não for capaz de gerar um tipo novo de pessoa, então permanecerá distanciado da vida delas.
Não há nada mais decisivo no momento presente do que a habilidade de gerar adultos na fé, adultos que vivem livremente entre os outros e que podem dar testemunhos de fé não só quando vão à igreja ou quando participam de alguma atividade à parte da vida cotidiana, mas em seu ambiente de trabalho e em suas vidas.
Precisamos de pessoas que podem difundir a novidade da fé no seio do mundo, o que leva à pergunta: “Mas de onde estamos tirando esta novidade, esse frescor? O que está por trás disso?” Estar em condições de responder a estas perguntas levará naturalmente as pessoas a algo mais grandioso.
É um testemunho real da fé mesmo se as pessoas não conseguem identificar o nome de Cristo, só olhar para a pessoa torna impossível não querer entender o que a faz brilhar. Elas irão querer saber quem é a “terceira parte”, e temos aqui um testemunho.
Somente um testemunho verdadeiro pode tornar visível e tangível o evento da fé (…) a habilidade de fazer a fé parecer razoável às pessoas só pode vir de uma experiência real dela, um “evento”. É isso o que capacita uma pessoa a não ter receio de ser incompreendida, e a resistir à tentação de reduzir o cristianismo a algo mais.
Permitam-me perguntar o seguinte: Por que pensamos às vezes que, para um gesto gratuito ser entendido, ele precisa ser reduzido a algo mais, ele precisa ser menos gratuito? Quanto mais gratuito for, mais surpreendente e cativante, não? Não precisamos reduzir as coisas para serem compreendidas.
Por vezes, achamos que, para uma pessoa que não tem fé, precisamos reduzir as coisas para que sejam compreendidas. Mas é o contrário: quanto mais um gesto é gratuito, como o de perdoar alguém por uma ofensa, ao invés de responder na mesma moeda, mais esse gesto irá absolutamente surpreender. Não é que precisamos reduzi-lo, diminuir o seu efeito, torná-la mais simples, a fim de evitar escândalos (…) Ninguém se escandaliza por ser perdoado.
Na última frase do livro, o senhor escreve que a alegria é como uma flor de cacto. O que quer dizer?
A fé introduz um atrativo à vida, que ao mesmo tempo nos atrai a ela mas também não nos deixa a sós. Nada desafia mais uma pessoa do que algo que responda a todas as suas expectativas em plenitude. Nada é mais transformador do que ter todas as nossas promessas realizadas! É por isso que a fé é como [uma flor de] cacto … é bela, nos atrai, mas também é espinhenta. Podemos aceitá-la ou rejeitá-la, mas nada transforma e perturba a sua vida com o mesmo poder.
Seria correto dizer que este livro é uma tentativa de expressar a visão de evangelização que advém de Giussani, e que vem sendo amplificada pelos três últimos papas?
Para mim, a resposta é sim.
A reportagem é de John L. Allen Jr. e Inés San Martin, publicada por Crux, 22-06-2017.