No dia 8 de dezembro passado deveria ter ocorrido a votação no Senado Brasileiro do projeto de
lei 122, que pretende criminalizar a chamada “homofobia”. A votação não ocorreu devido ao incendido
debate ocorrido e pelo medo de que o dito projeto fosse rejeitado pela maioria dos senadores. A lição tirada naquele dia foi que o assunto precisa ser aprofundado e que o diálogo na sociedade brasileira deve continuar.
Entramos, então, num tempo de reflexão.
O projeto de lei contra a “homofobia” tinha sido formulado pela primeira vez em 2006 e desde
então espera a votação. Para que essa pudesse ter ocorrido, a senadora Marta Suplicy fez uma pequena
alteração no mesmo, acrescentando o artigo terceiro: “Essa lei não se aplica à manifestação pacífica de
pensamento decorrente da fé e da moral fundada na liberdade de consciência, de crença e de religião de
que trata o inciso VI do art. 5º da Constituição Federal”. O objetivo de tal inciso é claro: ganhar o apoio
de senadores religiosos ou os que escutam os argumentos provenientes dessa grande parte do tecido social brasileiro.
O resultado foi que, além da votação do projeto ser adiada, agora conta com a oposição ainda mais
forte de grupos religiosos e também dos chamados grupos LGBT, que não aceitam a inserção do citado
artigo.
Desse modo o PL 122 vem sendo cada vez mais rejeitado e suscitando sérias reflexões.
Nossa opinião é que dito projeto de lei é inaceitável porque o seu texto é pouco lógico, ambíguo e suscita mais
dúvidas do que certezas. Vamos analisar o que diz o texto de tal projeto, o que esse supõe, as dúvidas que suscita na hora da sua aplicação prática e quais poderiam ser as consequências da aprovação dessa lei na sociedade brasileira.
Em primeiro lugar parece evidente que o PL 122 parte de dois princípios. Supõe, por um lado, que
há grande diversidade entre os comportamentos sexuais no nosso País. (“Para efeito desta Lei, o termo sexo refere-se à distinção entre homens e mulheres; orientação sexual, à heterossexualidade, homossexualidade ou bissexualidade; e identidade de gênero, à transexualidade e à travestilidade”, diz no art. 2).
E, por outro lado,
dito projeto leva implícito que, de fato, não há tanta diversidade na sociedade brasileira. Pois o espírito dessa lei dá a ideia de que há uma imensa maioria heterossexual que oprime a minoria homossexual no Brasil. Ou seja, por um lado, o projeto quer se basear na existência de grande distinção dentro do âmbito da sexualidade
humana. E, ao mesmo tempo, supõe que há muito pouca diversidade no comportamento e no modo de pensar
do povo brasileiro. Em outras palavras, tal projeto, assim como a Ideologia que o inspira, está inserido numa
dialética que afirma, concomitantemente, duas coisas não somente diferentes, mas sim contraditórias.
Mas o PL 122 pode parecer ainda mais estranho se analisarmos detalhadamente partes do seu
conteúdo. No primeiro artigo o projeto diz: “Esta Lei define crimes resultantes de preconceito de sexo,
orientação sexual ou identidade de gênero”. Ora, se é assim, essa lei poderia ser aplicada não somente contra
quem comete crimes, por motivos de preconceitos, contra homossexuais, mas também contra heterossexuais,
bissexuais, transexuais e travestis, homens ou mulheres. Ou seja, dita lei não pode ser considerada como uma
lei que criminaliza a “homofobia”, mas sim toda expressão contrária à diversidade existente. Sendo assim, é
compreensível que grande parte da comunidade LGBT é contrária a esse projeto.
Nos outros artigos, o PL 122 elenca o que, a partir de sua aprovação, passaria a ser
considerado “crime”, com penas previstas entre um e três anos de reclusão: “Deixar de contratar ou nomear
alguém ou dificultar sua contratação ou nomeação, quando atendidas as qualificações exigidas para o
posto de trabalho, motivado por preconceito de sexo, orientação sexual ou identidade de gênero”; “conferir
tratamento diferenciado ao empregado ou servidor, motivado por preconceito de sexo, orientação sexual
ou identidade de gênero” (art. 4); “recusar ou impedir o acesso de alguém a estabelecimento comercial
de qualquer natureza ou negar-lhe atendimento, motivado por preconceito de sexo, orientação sexual ou
identidade de gênero” (art. 5); “recusar ou impedir o acesso de alguém a repartição pública de qualquer
natureza ou negar-lhe a prestação de serviço público motivado por preconceito de sexo, orientação sexual
ou identidade de gênero” (art. 6); “induzir alguém à prática de violência de qualquer natureza, motivado por
preconceito de sexo, orientação sexual ou identidade de gênero” (art. 7).
Não há como não considerar assustador o fato de que uma pessoa não querer contratar alguém, ou
tratar de modo diferenciado alguém no ambiente de trabalho, ou atender mal um cliente num estabelecimento
comercial ou público possa ser considerado um crime, punido com tanto tempo de prisão. E nesse ponto
surgem algumas dúvidas: não seriam exageradas essas punições? Estamos dispostos a aceitar como “crime”
tão grave algo que pode ser banal e ordinário?
Agora passemos a pensar nas manifestações práticas do que até aqui foi elencado como hipótese
abstrata. Imaginemos o caso de um advogado ou de um contador que trabalha sozinho no seu escritório
e começa a procurar alguém jovem para que possa trabalhar com ele. Suponhamos o caso de que esse
empregador seja casado e que pretenda manter a fidelidade a sua esposa. Ele poderia pensar que fosse
conveniente contratar uma pessoa do seu mesmo sexo, ao qual não sente nenhuma atração, simplesmente por
não querer correr riscos, ao ter que passar oito horas por dia perto de uma jovem de 18 anos. Suponhamos
que duas pessoas vão procurar esse emprego, um jovem e uma jovem. Se o empregador escolhesse o jovem,
essa lei poderia dar àquela jovem a possibilidade de denunciar o empregador por “crimes resultantes de
preconceito de sexo” e esse correria o risco de passar um bom período longe da sua família. Seria justa
tal decisão judicial? Estamos dispostos a enviar essa pessoa a um dos presídios brasileiros? Uma pessoa
não pode ter preferências na hora de contratar seus empregados? Ou deverá estar condenada a um medo
constante da justiça?
Outra situação seria o caso de quem achar que não foi bem atendido num estabelecimento
comercial. Com essa lei em vigor essa pessoa poderia denunciar aos vendedores ou aos donos daquele
estabelecimento que sofreu preconceito devido a sua orientação sexual. Uns poderiam dizer que sofreram
preconceitos porque são gays; outros porque não o são; uns porque são mulheres, outros porque são homens,
uns porque são bissexuais, outros porque são transexuais etc. De fato, isso não seria absurdo, visto que
todas as possibilidades estão contempladas em dita lei, que pretende combater todo tipo de preconceito por
motivos “de sexo, orientação sexual ou identidade de gênero”.
Imaginemos quanto poderia crescer o trabalho
da polícia e também o número de processos parados ou atrasados na justiça brasileira.
Pensemos outro caso hipotético: uma pessoa vai procurar emprego numa das dezenas de ONGs
existentes no Brasil, que trabalham para ampliar os chamados direitos da comunidade LGBT. Se essa
pessoa consegue o emprego e, com o tempo, percebe-se que essa não é um homossexual. Essa pessoa seria
demitida? No caso que o fosse, poderia denunciar o empregador como “criminal”, devido ao fato de tê-lo
demitido “por motivos de preconceitos contra sua orientação sexual”?
Os interrogativos surgidos dessa lei são muitos, muito mais do que as certezas. Levantemos outros
ainda. A aprovação dessa lei obrigará a fechar os estabelecimentos próprios do chamado “turismo gay”
(bares, hotéis, boates etc.) no nosso País, como negócios discriminatórios contra os heterossexuais? Se não,
qual seria o motivo que justificaria tal posição?
Pensemos ainda outra possibilidade. Quando uma pessoa vai procurar um emprego. Com essa lei
ativa, o empregador deverá perguntar ao interessado qual é seu “sexo, orientação ou identidade sexual”? Se
o fizer, essa pessoa deveria responder tal pergunta? Evidentemente que não, pois isso faz parte da intimidade
de cada pessoa, algo considerado inviolável pela nossa Constituição (art. 5, X).
O que essa lei nos leva a pensar é que para que alguém sofra preconceito a pessoa “preconceituosa”
deve, por definição, viver e pensar de modo diverso de quem sofre o preconceito. Imaginemos a seguinte
situação: alguém (homossexual ou não) começa a trabalhar e depois de algum tempo é demitido. Essa
pessoa julga que o motivo foi um preconceito por parte do empregador e decide entrar na justiça contra
o “preconceituoso”. O dito patrão, quando for convocado pela polícia ou pelo juiz deverá responder
em algum momento à seguinte pergunta: “você demitiu essa pessoa por que ela é homossexual?” (ou
heterossexual, ou transexual, ou bissexual etc. tudo está incluído no texto dessa lei). Se o empregador
respondesse no juízo: “mas como posso ser preconceituoso, se sou homossexual como ele?” (ou
heterossexual, ou transexual, ou bissexual etc.). Nesse caso parece óbvio que dito processo deveria ser
encerrado, visto que é absurdo que alguém seja considerado preconceituoso consigo mesmo (ou com quem
vive e pensa de modo igual a si mesmo). Nesse caso, poderiam os advogados ou os juízes investigar se
de fato o acusado tem efetivamente o “sexo”, ou a “orientação sexual” ou a “identidade de gênero” que
declarou ter naquele momento? Evidentemente não, eles não têm essa capacidade, uma vez que é inviolável
a intimidade da pessoa e que a “orientação sexual” de cada pessoa é, segundo muitos, algo instável.
Na prática não existe um documento no nosso País que conste qual é a “orientação sexual” ou
a “identidade de gênero” de cada pessoa, em base à qual essa possa ser julgada como preconceituosa.
Alguém poderia pensar, então, que a solução para os problemas surgidos da aprovação do PL 122 seria
adotar esse tipo de documento. Mas se alguém chegasse algum dia a exigir isso, além de violar a legítima
intimidade de cada pessoa, cometeria uma nova contradição. Pois é um dogma perfeitamente assentado pelos
defensores da Ideologia do Gênero (Gender) que “ninguém é 100% uma só coisa”, que ninguém possui uma
identidade sexual permanente, pois essa é e sempre deve ser mudada. Evidentemente, há quem observe que
os defensores de dita Ideologia não são nesse ponto muito coerentes, porque defendem, ao mesmo tempo,
que todos os heterossexuais podem (ou devem) se tornar homossexuais, (o que vulgarmente chamam de “sair
do armário”) e ao mesmo tempo um homossexual jamais pode voltar a ser heterossexual. Ou seja, a ideia de
um documento que conste a “orientação sexual” ou a “identidade de gênero” seria um grande absurdo.
A questão jurídica séria que aparece aqui é o fato de que ninguém pode comprovar qual seja a
orientação sexual de outra pessoa e, simultaneamente, ninguém é obrigado a declarar qual essa seja. E
conhecer dita identidade, no caso de que exista, seria indispensável para que pudesse haver um juízo sério
contra uma pessoa acusada de “preconceito”, em razão de “sexo, orientação sexual ou identidade de gênero”,
como prevê esse projeto de lei. Isso é assim porque o Direito só pode julgar os atos externos das pessoas,
realizados através do corpo, e não pode julgar alguém segundo suas intenções mais íntimas. O Direito não
possui instrumentos para provar que uma pessoa agiu de determinado modo porque possui essa ou aquela
intenção, essa ou aquela maneira de pensar, pois não pode (e nem deve) conhecer a intimidade das pessoas.
Tudo isso nos faz concluir que dita lei é pouco racional e absolutamente inútil. Irracional por
causa dos princípios contraditórios dos quais parte, por causa da ambiguidade do seu texto (capaz de deixar
perplexos até mesmo os líderes do movimento LGBT), porque exige do sistema judicial algo que esse não
pode comprovar: o fato de que houve realmente um “preconceito”. Dita lei é inútil porque qualquer acusado
poderia se defender alegando que não é preconceituoso porque pensa, no âmbito da sexualidade humana, do
mesmo modo que pensa o acusador, algo que não pode ser comprovado por nenhum juiz humano.
E o caso do artigo sétimo de tal lei? Tem algum sentido? O texto diz: “induzir alguém à prática
de violência de qualquer natureza, motivado por preconceito de sexo, orientação sexual ou identidade
de gênero”. É difícil ver sentido nesse texto devido à sua ambiguidade, o que poderia causar graves
injustiças. Em particular, o que significa “violência de qualquer natureza”? Segundo uma parte da filosofia
contemporânea, de base nietzschiana, alguém que pretende dizer algo, considerado como “verdade”, comete
já um ato de violência. Para esses filósofos ninguém pode afirmar de possuir a verdade, de modo que “dizer a
verdade” é uma forma de violência contra quem não pensa de modo igual.
Evidentemente esses filósofos defendem como se fosse uma verdade absoluta o fato de que
ninguém pode conhecer a verdade e demostram haver muito mais convicção de quem humildemente
reconhece que a verdade é um bem social, que pode ser conhecida por quem a busca, sempre em modo
parcial e gradual, e que essa pode ser descoberta através do diálogo.
Mas o importante aqui é que se essa lei
fosse aprovada os julgamentos passariam a depender da postura filosófica do juiz. Se “ato que induz a prática
da violência” for considerado simplesmente o “dizer algo com valor de verdade”, isso poderia levar à prisão
não somente quem pregasse contra o homossexualismo nos cultos religiosos, mas sim a qualquer pessoa que
se expressasse contra uma conduta sexual diversa da sua. Se assim o fosse, dita lei deixaria de ser inútil e
passaria a ser a base para todo tipo de arbitrariedade.
De modo que além de violar efetivamente a liberdade de expressão, essa lei poderia ser a base
legal para todo tipo de injustiças. Além disso, uma lei que limita a liberdade de expressão é algo totalmente
anacrônico, pois voltaria a institucionalizar a “censura” numa época em que cada um pode se expressar
através de internet e de tantos meios de comunicação social.
Se essa lei fosse aprovada, sendo essencialmente irracional, não poderia ser considerada como uma
lei, mas como a regulamentação estatal de uma injustiça. Toda lei deveria ser um ordenamento racional,
instituída e promulgada pela autoridade competente em vistas ao bem comum da sociedade. Mas o PL 122
promoveria um mal comum, ou seja, a censura contra toda pessoa que se pronunciasse sobre como acha que
se deve viver a sexualidade humana. Se assim o fosse, ocorreria uma consequência trágica: a população seria
condenada ao silêncio nessas questões, ou pelo menos ao medo constante da prisão.
Por fim devo fazer uma confissão: essa lei me parece tão ilógica que chega a ser cômica. Talvez
o leitor possa se lembrar do conto “O Alienista” de Machado de Assis. Naquele texto um médico, o grande
cientista de uma pequena cidade brasileira, havia conquistado tanto a simpatia dos poderes políticos da
mesma, que lhe foi outorgado o poder de prender no hospício por ele fundado (a Casa Verde) todos os que
ele julgasse loucos. Durante o conto, vemos que várias pessoas ingressam e saem do hospício segundo muda
a ideia de “saúde mental” daquele sábio cientista. Pouco antes do final do conto, aquele curioso personagem
conseguiu a proeza de meter naquela prisão toda a população daquela cidade. Então, depois de refletir um
pouco mais, aquele médico concluiu que todos na cidade estavam, na verdade, sadios e somente ele era
realmente louco. De modo semelhante, o PL 122 pode dar motivos às autoridades civis de fazer com que um
grande número de brasileiros passe uma temporada na prisão (que certamente não será tão agradável como
era a Casa Verde machadiana) ou pode, simplesmente, não servir para absolutamente nada.
De modo que essa lei conseguiu por de acordo todo o mundo: homossexuais e heterossexuais;
católicos, evangélicos e ateus; “homófobos”, “homomaníacos” e toda a maioria do povo brasileiro que
ainda conserva sua saúde mental. Todos pedimos aos nossos respeitáveis senadores e deputados o abandono
integral de dito projeto de lei (e outros semelhantes). O motivo principal desse pedido é que essa lei antes
de ser um atentado contra a liberdade de expressão é um atentado contra a nossa razão. Queremos pedir
e encorajar os nobres representantes do povo brasileiro que se empenhem com coragem e inteligência na
elaboração de leis que, efetivamente, sejam ordenamentos racionais que sirvam ao bem comum da nossa
sociedade, mais do que na elaboração de projetos injustos e ideológicos.
Escrito em Roma em 12/12/2011
Anderson Machado Alves
Doutorando em filosofia na Pontifícia Universidade da Santa Cruz, em Roma.