O itinerário
A penosa estrada percorrida ao longo da história do pensamento pode ser resumida essencialmente em uma pergunta: quem sou eu?
Esse questionamento é o eixo fundamental da filosofia e o ponto de partida da razão humana. O dinamismo da razão e a energia do “motor humano” ganharam vida quando, pela primeira vez, o homem sentiu-se tocado, provocado pela realidade.
Na verdade, a beleza da filosofia está justamente na sua capacidade de conectar pontos distantes da história unindo gerações, aproximando seres humanos a partir dessa experiência, a partir do confronto com a realidade.
Desde a filosofia grega, a grande tarefa dos pensadores foi desvelar a realidade (em grego, aletheia), ou seja, arrancar o “véu” que cobre a realidade, descobrir a Verdade. Para tanto, era preciso escolher um hodós, ou melhor, determinar um methodos (nisso, Parmênides em especial, foi brilhante).
Mas, esse era só o início de uma caminhada. Ao longo dos séculos a humanidade percorreu diversas vias. Andamos por vias estreitas, largas, obtusas, retas, enfim, buscamos várias alternativas para chegarmos à Verdade.
A questão que nos importa agora é: os homens alcançaram essa Verdade?
A via racionalista
Já foi dito que o que põe em ação o motor humano é esse desejo pela Verdade. Na história da filosofa, um dos caminhos mais notórios para se alcançar esse objeto de desejo foi a razão. Podemos citar inúmeros racionalistas notáveis: Sócrates, Descartes, Rousseau, Nietzsche, etc.
Para tentar entender o racionalismo, precisamos de um ponto de partida. Prefiro escolher um problema: do que a razão é capaz?
Vamos fazer uma rápida análise e em breve retornaremos ao problema.
Um olhar atento sobre a história nos faz perceber que o mundo contemporâneo é herdeiro direto do pensamento iluminista, e, portanto, racionalista. A deusa razão de Robespierre ainda encanta muitas pessoas ao redor do globo.
As correntes modernas de pensamento tais como o existencialismo, o neoateísmo, o comunismo e o positivismo, são manifestações expressas da crença na infalibilidade da razão. A questão é descobrir, dentro do racionalismo, que “coisa” é essa que é capaz de atrair tantos homens e mulheres no decorrer desses séculos.
Sem mais delongas, explico. Essa “coisa” se chama ilusão de liberdade.
A LIBERDADE – Um dos temas centrais da filosofia, que representa também o cerne da corrente existencialista, é a tal liberdade. Objeto de valor inestimável, ela encabeçou e lançou as bases do liberalismo, foi causa de guerras e revoluções, foi tema de poemas, pinturas e músicas. Definitivamente, não há como negar o fato de que a liberdade representa um dos pilares do espírito humano. Fica fácil compreender, portanto, que a liberdade é também objeto de desejo dos homens.
Antes de voltarmos ao problema da razão, somos obrigados a fazer um último questionamento. É possível ser livre? É possível não ser?
Respondo logo. Sim, é possível ser e não ser livre. Para explicar trago o seguinte exemplo:
“A conseqüência essencial de nossas observações anteriores é a de que o homem, estando condenado a ser livre, carrega nos ombros o peso do mundo inteiro: é responsável pelo mundo e por si mesmo enquanto maneira de ser” (SARTRE, Jean-Paul, O ser e o nada. Ed. Vozes, 16ª edição; pg. 678, grifo nosso).
O pensamento de Sartre é categórico. Os seres humanos estão condenados à liberdade, ou seja, essa condição é inerente à natureza humana.
Agora, isso me parece certo? De maneira alguma!
O filósofo francês pressupôs que a liberdade era uma imposição da nossa natureza, que ela fazia parte da nossa condição, quando, na realidade, era e é simplesmente um objeto a ser alcançado, assim como a Verdade.
E isso nos remete finalmente ao problema da razão.
O erro ou a falsa percepção da realidade por parte do existencialista decorreu de uma noção errada de razão, de ser humano. A mentalidade moderna costuma considerar que a razão é apenas um conjunto de categorias nas quais a realidade é obrigada a entrar. Tudo aquilo que não entra nessas categorias é tido como irracional. Assim, o homem moderno quer ter a pretensão de encarar, de enfrentar a realidade com a razão. Em última instância, o que Sartre e o homem moderno pretendem é definir o ser humano com a razão. Um erro crasso!
Jamais conseguiremos nos definir partindo unicamente da razão. Alguns podem perguntar, “Mas, existe outro modo?”. Não. Não há como o homem definir totalmente o próprio homem.
A pergunta que se impõe neste momento, portanto, é outra: mesmo estando presos à condição humana, às limitações humanas, é possível chegar a uma conclusão satisfatória?
Sim. É só uma questão de método.
O coração, a razão e a realidade
Se a via racionalista é deficiente, como devemos proceder?
Para obtermos uma correta percepção da realidade, devemos sim fazer uso da razão, porém, também devemos usar o nosso “coração”. Explico. O “coração” nada mais é do que aquele conjunto de exigências e evidências com as quais o homem é lançado no confronto com tudo que existe (por exemplo, a exigência de felicidade).
Não há como negar que queremos ser livres, que queremos ser felizes. No fundo, no fundo, esses desejos de Verdade, Justiça, Liberdade e Felicidade emergem do nosso coração. Por mais que queiramos negar a existência desses objetos, se levarmos honestamente em conta esses desejos inevitáveis, não há como achar essa postura sensata.
Em suma, o que quero dizer é o seguinte: o coração e a razão são inseparáveis instrumentos de que dispõe o ser humano para confrontar a realidade. Ambos são inerentes à nossa constituição, ou seja, eles nos foram dados.
Por que o coração?
Por que não podemos usar unicamente a razão para chegar às respostas que nos interessam? É simples. O coração é mais que um instrumento humano, é um critério de avaliação. Que isso quer dizer? Quer dizer que toda a nossa vida, todas as escolhas que fazemos se baseiam nesse critério elementar.
Por exemplo. Nós acordamos e temos disposição num dia que amanhece, pois alimentamos a vontade de nos realizarmos um dia, de sermos felizes mesmo que por um breve período. Em outras palavras, se perdemos toda a esperança na Felicidade, no encontro real da Verdade, perdemos também a vontade de viver.
Dar ouvidos, portanto, ao coração, significa dar um passo importante no caminho em direção à Verdade, à Felicidade. Esse é o método, esse é o caminho que devemos escolher.
Um novo problema: Deus
Uma dinamite explodiu no fim do século XIX: “Gott ist tot!”. O século XX abriu as portas de sua história ao som da voz retumbante do profeta Zaratustra que exclamava: Deus está morto!
Até então ele havia vivido nas cabeças dos religiosos, mas seu fim estaria decretado com o nascimento do Übermensch, ou Super-homem. Já não havia espaço para Deus no mundo futuro previsto por Friedrich Nietzsche.
Nos dias de hoje, contudo, em pleno século XXI, a problemática de sua existência ainda não foi racionalmente solucionada. E nem será. Até porque, se não temos capacidade de entender totalmente nem a nossa própria condição humana, imagine o problema divino.
As religiões e o preconceito
A mentalidade contemporânea considera que fides et ratio são absolutamente incomunicáveis. Se falamos de Fé, estamos num campo, se falamos de Razão, estamos noutro. Quero desmistificar essa idéia.
Antes, contudo, vou fazer algumas colocações sobre o preconceito que sofre a realidade religiosa.
A mentalidade iluminista costuma taxar as pessoas religiosas de ignorantes. Também quero discordar disso. A religião é uma realidade humana, e, enquanto realidade, deve ser encarada de outra maneira. Quando julgamos a experiência religiosa de outra pessoa devemos ter critérios justos de avaliação.
Dizer, “é um ignorante”, sem ao menos ter assumido o compromisso de conhecer essa realidade religiosa é uma arrogância. Age de modo equívoco também, quem tiver a pretensão de querer conhecer essa realidade através da história, da doutrina, ou até mesmo da teologia de determinada religião. Como devemos agir então? Explico logo abaixo.
Como realizar uma avaliação justa?
Vamos pensar sobre a seguinte afirmação: “Sou Católico Apostólico Romano. Faço a experiência da convivência na comunidade cristã e professo um credo determinado” (esse é o meu caso, por sinal).
Podemos levantar uma série de questões intrincadas da Igreja Católica: a fraqueza dos padres, a imprecisão da teologia, a Inquisição, a razão dos sacramentos, da ortodoxia, do tradicionalismo, enfim, várias!
Se partimos, porém, desse ponto, incorremos em erro. Como disse, quero propor uma avaliação que não dependa unicamente do estudo racional de certa religião. Como, então, devemos realizar essa avaliação?
Devemos avaliar determinada religião a partir de uma experiência pessoal e não de um mero exercício de raciocínio.
Ou seja, para avaliar uma realidade religiosa precisamos nos jogar inteira e sinceramente numa experiência religiosa. E como fazemos isso? Vou tentar explicar.
Em relação à experiência religiosa só posso falar pelo Catolicismo. Estou pressupondo, portanto, que a religião Católica é a única capaz de conduzir o homem à Verdade. Por que e como cheguei a essa conclusão? De modo simplista poderia dizer: usando da Fé e da Razão. Mas, prefiro ir além.
A pretensão e a experiência cristãs
Qual é a origem da pretensão cristã? Doutrinária e teologicamente falando, é a afirmação do fato de que Deus se fez homem na figura de Cristo. Ou seja, é a afirmação racional do movimento inesperado e inverso do próprio Deus que se fez homem e veio ao encontro da humanidade. Será isso possível? Isso faz sentido? – quem faz essas perguntas é a nossa razão.
E é aqui que devemos recorrer ao nosso coração.
Se o nosso coração nos impõe o desejo de infinito, devemos tentar saciá-lo mesmo que racionalmente pareça uma tolice. Se conseguirmos deixar de lado os nossos preconceitos racionalistas (aquele apego desesperado e demasiado a tudo que é exclusivamente racional), abriremos caminho para uma experiência. Aliás, o caminho para a Verdade é uma experiência.
E de que trata essa tal experiência cristã? De um encontro. Um encontro pessoal, inexplicável e irresistível com uma Presença: o próprio Cristo que se faz presente na realidade humana. O próprio Deus que vêm novamente ao encontro do homem… a cada dia, a cada momento.
Quando uso minha razão para tentar compreender essa realidade, tudo me parece absurdamente impossível, mesmo sendo católico praticante. É normal que assim seja. É por isso que a proposta católica é a vivência da fé (dar ouvidos ao coração) e da razão. Porque quando excluímos ou negligenciamos esse nosso desejo de infinito, deixamos de compreender uma parte essencial de nós mesmos. Quando deixamos que ele venha à tona, passamos a viver uma nova dimensão da realidade. A dimensão da Fé.
Isso não significa que estamos sendo irracionais ou que não estamos fazendo uso da razão. A razão vai ser de grande valia no estudo histórico, doutrinário e teológico. Contudo, ele só deve ser desenvolvido depois dessa experiência, depois do encontro real, profundo e único do homem com Deus.
O que tento dizer, em outras palavras, é que devemos ser realistas. Quer dizer, devemos conhecer a realidade religiosa segundo um método que me é imposto e que, portanto, não foi escolhido por mim, não foi idealizado por mim. Se nós pudéssemos escolher o método, certamente escolheríamos a razão, ou seja, escolheríamos conhecer a realidade religiosa com a razão. Mas, não podemos! O método para se conhecer essa experiência é determinado pelo próprio objeto em análise e não por nós.
Para concluir, lembro uma frase extremamente significativa de Alexis Carrel: “Muito raciocínio e pouca observação conduzem ao erro. Pouco raciocínio e muita observação conduzem à verdade”. Espero que os leitores consigam observar mais os acontecimentos que gritam aos nossos ouvidos e deixem de construir, ingenuamente, realidades ideológicas.
André Rodrigues