Nas grandes manifestações organizadas em Paris em protesto contra o projeto de legalização do casamento entre homossexuais e a possibilidade de esses adotarem filhos, e portanto também gerá-los por meio da procriação assistida, representantes das três religiões monoteístas – católicos, judeus e muçulmanos – marcharam lado a lado. A defesa da família “natural” aproximou suas posições, embora permaneçam – pelo menos para o Islã – as grandes diferenças na questão do papel da mulher. Mas, principalmente, criou-se uma forte aliança entre Gilles Bernheim, grão-rabino da França, e o papa Bento XVI: Bernheim redigiu um documento muito convincente contra o casamento gay, que o papa mencionou no discurso de Natal à cúria, revelando considerá-lo “cuidadosamente documentado e profundamente tocante”, e citando amplos trechos.
O ponto no qual ambos convergem é o reconhecimento da riqueza da criação de uma humanidade dividida em dois sexos, uma diversidade que se torna imediatamente fertilidade e garante a continuidade do grupo humano e o vínculo entre as gerações.
De fato, é a fecundidade que fundamenta a distinção masculino/feminino, o que significa que ela se baseia no esquema da geração.
Negando esse caráter de diversidade fértil, negamos a identidade do ser humano como conjunto indivisível alma e corpo, e contestamos a própria raiz da natureza humana, propondo outra natureza composta apenas de espírito e vontade. Aceitando essa última possibilidade, o homem nega que deva algo à natureza, a sua própria natureza, e propõe uma identidade construída apenas sobre sua vontade e seu desejo.
Compreende-se de imediato que essa posição constitui o atentado mais radical à própria existência de um criador, que doou ao ser humano uma identidade pré-constituída, dotando-o de um corpo que pode pertencer a dois gêneros diferentes, macho e fêmea. Se a dualidade homem-mulher for substituída por uma identidade neutra, a do gênero, que depende apenas do desejo individual, a família como lugar da procriação deixará de existir. De fato, a família à qual os gays querem ter acesso não é mais uma família, porque não é o lugar da procriação dos filhos. Como escreveu o rabino Bernheim, a prole perde o lugar e a dignidade que lhe cabe, torna-se um objeto ao qual a pessoa tem direito, um objeto que ela pode adquirir por meio da engenharia procriativa.
As conclusões sobre as consequências dessa mudança são convergentes: se o sexo deixa de constituir um dado originado pela natureza, pela realidade corporal, mas constitui apenas um papel social, ao qual o homem pode ter acesso por uma decisão autônoma, o que está realmente em jogo, como escreveram Bento XVI e o rabino Bernheim, é “a visão do próprio ser, daquilo que realmente significa ser homens”.
A gravidade da situação foi portanto percebida pelos líderes religiosos com a mesma dramaticidade, e isso explica sua aliança natural na defesa da família, batalha na qual, como afirmou Bento XVI, o que está em jogo “é o próprio homem”, motivo pelo qual “quem defende Deus, defende o homem”.
A posição do Vaticano a respeito dessa matéria é, portanto, clara e coerente com as posições defendidas nos anos passados diante das graves questões bioéticas que o desenvolvimento tecnológico e científico impuseram à cultura contemporânea. O respeito pelo ser humano e por sua natureza original, criada por Deus, e a concepção do homem como conjunto indivisível de alma e corpo, ao qual a encarnação conferiu um estatuto espiritual: são esses os fundamentos de todo pronunciamento bioético da Igreja.
Consequentemente, o comportamento sexual e as questões levantadas no início e no fim da vida nunca são vistas exclusivamente como médicas, ou exclusivamente como materiais – referimo-nos a quem considera o embrião um conjunto de células, ou um doente terminal inconsciente um resíduo de que as pessoas devem se desfazer -, mas como problemas que dizem respeito à identidade em seu conjunto, psíquica e espiritual, do ser humano, criado à imagem de Deus.
O conflito entre essa posição da Igreja – caracterizada por uma grande coerência – e as exigências de um progresso tecnológico-científico que pretende ser autônomo e livre de todo vínculo ético eclodiu pela primeira vez em 1968, com a encíclica Humanae Vitae. Nela, Paulo VI negava a legitimidade moral das práticas anticoncepcionais que intervêm para deformar o sentido e o fim da relação sexual. E propunha realizar, se necessário, uma regulamentação dos nascimentos por meio de métodos naturais. Mas nem a descoberta, pelo casal Billings, de um método natural dotado de probabilidades de eficácia extremamente elevadas, com a vantagem de ser gratuito e não prejudicar a saúde da mulher, impediu que a Igreja fosse acusada de obscurantismo e insensibilidade em relação aos problemas dos casais.
A Humanae Vitae, assim como a encíclica que a antecedera sobre o tema, Casti Connubii (1931), recorre à ideia de natureza, direitos naturais e condição natural como requisitos criados por Deus a serem compreendidos e salvaguardados. A própria ideia de um início natural da vida, e de um fim igualmente natural, a ser defendida, está na base das posições da Igreja referentes aos problemas bioéticos relacionados ao estatuto do embrião e à eutanásia.
A quem argumenta com o fato de que já não existe mais nada de natural, porque tudo que diz respeito ao ser humano foi manipulado, a Igreja sempre responde procurando distinguir, em todas as circunstâncias, a escolha que mais se aproxima da condição natural, sobretudo a que mais garanta a dignidade do ser humano.
Pois, como já foi dito a propósito do casamento homossexual, o conflito de fundo versa sobre a identidade da natureza humana, problema levantado no final do século 19, com a difusão do evolucionismo: o ser humano será simplesmente o animal mais evoluído, ao qual portanto é possível aplicar o mesmo tratamento aplicado aos animais, ou ele é qualitativamente outro ser, e exige um respeito diferente e uma defesa mais severa? É essa a questão de fundo, a respeito da qual – como é compreensível – as religiões têm muito a dizer e que determina as escolhas bioéticas. Não por acaso a eugenética se afirmou e se difundiu em seguida, e em consequência de certo tipo de evolucionismo, fortemente antirreligioso, e as questões éticas relativas ao ser humano – do aborto à seleção dos embriões sãos, e à morte assistida – são a consequência direta da posição que o indivíduo defende a esse respeito.
De todo modo, percebemos hoje, cada vez mais claramente, que as posições que podem ser definidas como ditadas por uma visão religiosa do mundo são compartilhadas, embora às vezes apenas em parte, por intelectuais laicos, como os filósofos Jürgen Habermas e Sylviane Agacinski, ou na Itália pela psicanalista Sivia Vegetti Finzi, motivo pelo qual não podem ser menosprezadas como remanescentes de uma mentalidade conservadora, imobilista e clerical.
Bento XVI destacou à época que, além da ecologia da natureza, é necessária uma ecologia do ser humano, a fim de defendê-lo das manipulações e degradações, frequentemente irreversíveis, às quais tende a ser submetido. Isso significaria, novamente, colocar o ponto de vista da Igreja ao lado do dos ecologistas, e não considerá-lo um sintoma de subdesenvolvimento cultural.
Foi exatamente esse ponto de vista diferente, o fato de vermos na Igreja uma visão original e crítica do que é politicamente correto dominante, que me levou – enquanto historiadora, ativista do movimento estudantil de 1968 e feminista – a defender as posições católicas, descoberta que vejo repetir-se nos meus alunos menos alinhados com a mentalidade corrente.
Ao mesmo tempo, tenho a consciência de que sempre existiu – conforme o comprova a história da Igreja – um feminismo cristão, que tende a valorizar a diferença feminina em lugar de palmilhar o caminho da assimilação ao modelo dominante, o masculino. Evidentemente, na Igreja há a necessidade de uma maior abertura para o feminino, de um reconhecimento do imenso papel desempenhado pelas mulheres nas formas mais diversas, mas essa é uma batalha que deverá ser travada em uma instituição que compartilha da minha ideia de mulher, que não acredita que a liberdade das mulheres possa fundamentar-se na legalização do aborto e na liberalização de todo tipo de contraceptivo, isto é, na negação da maternidade.
É por isso que, embora consciente da falta de reconhecimento do papel da mulher em seu interior, acredito que hoje a Igreja seja a única instituição que defende a identidade feminina de um achatamento que tende a apagar sua especificidade. A única que se contrapõe a novas formas de escravização do corpo feminino, como a venda de óvulos – produzidos com graves danos para a mulher – e a prática do aluguel do útero, evidentemente implícita no reconhecimento da procriação aos casais homossexuais.
Lucetta Scaraffia, historiadora e editorialista do jornal L’Osservatore Romano, em artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo.