A questão acima focaliza um aspecto do grave problema do mal existente no mundo.
O assunto requer aplicação serena do raciocínio, isento de sentimentalismo superficial. É o que nos propomos fazer nos incisos que se seguem.
1. Que é o mal?
Antes de analisar qualquer dos aspectos do problema, é imprescindível definir o que se entende propriamente por «mal».
Uma das mais frequentes causas de dificuldades no estudo da questão é a espontânea tendência que se tem, de conceber o mal como uma entidade positiva ou como um ser subsistente em si. Ora tal não se dá; o mal justamente não é algo de positivo, mas é negação ou ausência de ser e — note-se bem — ausência do ser devido ou do ser que deveria existir em tal determinado sujeito (é o que se chama propriamente carência).
Assim a falta de olhos no homem é um mal. pois a natureza humana inclui em suas notas constitutivas a potência visual; ao contrário, a ausência de asas na criatura humana não é um mal, pois a essência do homem não implica a faculdade de voar.
Caso a carência se dê na ordem física, ou seja, na linha da essência estática ou da estrutura característica de um ser, tem-se o mal físico (a cegueira, por exemplo). Se, porém, a carência se verifica na linha moral, isto é, na atividade de um ser consciente que, em vez de se encaminhar para seu autêntico Fim Supremo, se desvia deste, tem-se o mal moral ou o pecado (o furto, por exemplo).
Estas breves considerações sobre a essência do mal já são suficientes para que nos voltemos para a questão focalizada no cabeçalho deste artigo.
E os defeitos da natureza…?
A possibilidade de incorrer no mal ou de ser falho é inerente ao conceito de qualquer ser criado. Com efeito, quem diz «criatura», diz «ser que começou a existir, … ser, portanto, que existe transitória ou contingentemente, … ser que não se explica por si mesmo, mas que é explicado por outro, a saber, por Aquele que lhe deu inicio».
Sendo assim, entende-se que toda criatura, pelo fato mesmo de não possuir necessariamente o seu ser (ela não era, e veio a ser por obra de um agente que não é ela mesma), está sujeita a perder esse ser ou em parte (desvirtuando-se e definhando) ou totalmente (caindo na ruína e na morte). Uma criatura que, por sua natureza mesma, não fosse sujeita a falhar e perecer, seria uma contradição: seria simultaneamente volúvel, transitória, não tendo em si mesma a sua razão de ser (pelo fato de ser criatura), e imutável, absoluta (pelo fato de não poder perder o ser).
Vê-se assim que Deus jamais poderia ter feito uma criatura que não fosse naturalmente sujeita a decair e perecer (a infalibilidade, caso exista na criatura, é dom gratuito do Senhor); Deus não poderia ter feito outro Deus; o Absoluto não poderia ter produzido outro Absoluto.
Positivamente, a mesma conclusão se poderia formular nos seguintes termos: ao conceber cada criatura, o Criador concebeu-a dotada de perfeições em grau limitado. Isto, longe de depor contra a perfeição do Criador, era, e é, algo de necessário, algo de inerente ao conceito mesmo de criatura.
O que caracteriza a obra do Ser Perfeito ou de Deus, é o fato de que, no seu setor próprio, cada uma das criaturas é harmoniosa, reunindo um conjunto de elementos bem concatenados entre si; todos os seres criados são limitados, mas nenhum é, por sua essência mesma, contraditório ou absurdo.
Assim a natureza do ferro é em si devidamente equilibrada para desempenhar as funções características deste metal; não se espere, porém, que uma barra de ferro cresça e se multiplique…!
A rosa representa um artefato do Criador no setor da flor; não se espere, porém, que raciocine…O homem, sim, é dotado da faculdade de raciocinar; ninguém, porém, exigirá que o homem, raciocinando, chegue a conhecer todos as segredos da natureza; somente uma inteligência é capaz de compreender tudo que existe: a inteligência do Ser Absoluto ou de Deus.
A limitação e a defectibilidade inerentes a cada criatura explicam até mesmo a existência de indivíduos monstros no mundo. Sim, o Criador, ao acompanhar com a sua Providência a história do gênero humano, não tolhe a atividade das criaturas; ao contrário, suscita-a. Suscitando-a, porém, não modifica a natureza das criaturas, isto é, não as torna infalíveis. Donde se segue que na história da natureza mesma podem acontecer, e de fato acontecem, casos de aberração ou deformidade (cegos, paralíticos, surdo-mudos de nascença, etc.); o processo de formação de uma criancinha, por exemplo, no seio materno supõe a ação de glândulas, hormônios, tecidos, etc. dotados de perfeição finita; ao se concatenarem, compreende-se que tais fatores possam desgastar-se, dando lugar a erros, que são os chamados «erros da natureza». Esses erros, cuja frequência é relativamente exígua, não encobrem a harmonia geral do universo nem depõem contra a perfeição de Deus, pois não ”são devidos ao Criador ou à Causa Primária, mas às criaturas ou às causas secundárias, que o Senhor Supremo se digna envolver no plano de administrar o mundo.
Uma analogia muito clara ilustra quanto acabamos de dizer:
Tenha-se em vista uma grande máquina sabiamente instalada numa oficina para fabricar determinados objetos. O seu funcionamento é automático; a pressão sobre um botão desencadeia uma corrente elétrica que põe em movimento rodas, engrenagens, alavancas, etc.; a matéria prima colocada na abertura da máquina sai do lado oposto pronta para o consumo… — Certamente uma sábia inteligência humana inventou tal aparelhagem; outra inteligência humana — a do operário técnico — desencadeia e observa atentamente o funcionamento da máquina. Da parte do inventor e do operador, pode haver todo o esmero profissional desejável; não obstante, é inevitável, no fim do processo, o aparecimento de objetos defeituosos ou monstruosos (uma folha de papel enrugada, em vez de lisa; páginas em branco na impressão de um livro, etc.). Tais falhas decorrem da deficiência natural do mecanismo (houve desajuste em alguma engrenagem ou começou a faltar óleo numa alavanca, desgastou-se uma peça…); cada um dos elementos do conjunto sendo defectível, é normal que um ou outro deixe de prestar sua função até mesmo quando menos se espere. Os “monstros” que procedam da máquina não desdizem a inteligência do inventor nem a do operador; acontece, porém, que nenhuma inteligência pode fabricar peças de metal, lona ou óleo totalmente isentos de desvirtuamento; quem conseguisse tal, já não estaria produzindo peças de metal nem lona nem óleo…
Ora algo de semelhante se dá no universo: a sabedoria do Criador concebeu e coordena as atividades de cada criatura em vista de uma harmonia de conjunto… Pois bem; a perfeição do Criador se manifesta não numa pretensa ausência de falhas dos seres criados (isto equivaleria a cancelar a atividade mesma desses seres); patenteia-se, antes, na arte grandiosa de tirar dos males um bem mais relevante, um bem muito reluzente, porque colocado sobre um fundo muito negro, um bem mais admirável porque obtido por meio (ou apesar) de toda a precariedade de instrumentos criados.
Flores que não murchem nem morram são flores artificiais, flores que não possuem perfume,… que são e não são… Será que a vantagem de não murchar, no caso, ainda é vantagem? O fato é que Deus não quis fazer flores artificiais; fê-las como as vemos na natureza, perecíveis, sim, mas perfumadas e fiéis às leis da vida; o Criador permite que as flores naturais morram, mas sabe utilizar essa própria morte das flores para produzir novos e maiores bens…Assim faz Ele também com os homens,… e com os males dos homens!
Dom Estevão Bittencourt