Por Anita S. Bourdin
“Este é o primeiro livro de teologia que me transmite uma verdadeira emoção: tirou-me lágrimas”, confiava hoje um jornalista “vaticanista” italiano a seus colegas, após ter lido o segundo volume da obra de Bento XVI sobre Jesus, “Jesus de Nazaré, Da entrada em Jerusalém até à Ressurreição”
Que método o Papa utiliza para alcançar tal resultado? Se bem que se trata de um livro de rigorosa pesquisa, chega a conclusões como esta: “A vitória do amor será a última palavra da história do mundo” (trad. livre, N. do T.).
Encontramo-nos ante uma exegese (a interpretação da Sagrada Escritura) que comunica a esperança de “encontrar Jesus e crer n’Ele”. Aplica as indicações do Concílio Vaticano II na “Dei Verbum” – não suficientemente exploradas –, e cita recentes publicações alemãs.
O Papa explica seu método no prólogo. Cita autores (dos quais faz rigorosamente referência em uma bibliografia abundante, ainda que não asfixiante”: Martin Hengel, Peter Stuhlmacher e Franz Mußner, os quais lhe “confirmaram explicitamente no projeto de avançar” neste trabalho e “de acabar a obra iniciada”: “um precioso alento”.
Evoca também o “Jesus” publicado em 2008 pelo que ele chama de “irmão ecumênico”, o teólogo protestante Joachim Ringleben. Sublinha que entre os dois livros há uma “profunda unidade na compreensão essencial da pessoa de Jesus e de sua mensagem”.
E acrescenta: “Se bem que com enfoques diferentes, é a mesma fé que atua, produzindo um encontro com o mesmo Senhor Jesus”. O Papa espera que ambas publicações possam constituir “um testemunho ecumênico que ao seu modo possa servir à missão fundamental comum dos cristãos”.
Cita também o livro de crítica bíblica de Marius Reiser, de 2007, do qual recolhe “indicações relevantes para as novas vias da exegese, sem abandonar a importância que sempre tem o método histórico-crítico”.
Harmonizar dois métodos de interpretação
O Papa, de fato, sublinha os frutos do método histórico-crítico, o estudo das Escrituras à luz das circunstâncias históricas. “Uma coisa me parece óbvia: em duzentos anos de trabalho exegético, a interpretação histórico-crítica já deu o que tinha de dar de essencial”.
Mas para que a exegese possa se renovar, o Papa considera que é necessário que dê “um passo metodologicamente novo, voltando a se reconhecer como disciplina teológica, sem renunciar a seu caráter histórico”.
Ele propõe passar de uma “hermenêutica positivista” a uma “hermenêutica da fé”, desenvolvida de maneira concreta”, de modo “conforme ao texto”, unindo-se a uma “hermenêutica histórica, consciente de seus próprios limites para formar uma totalidade metodológica”.
“Esta articulação entre dois gêneros de hermenêutica muito diferentes entre si é uma tarefa que há de se realizar sempre de novo”, afirma.
Um passo na direção adequada
Ele acrescenta que a harmonia entre “hermenêutica da fé” e “hermenêutica histórica” não só é possível, mas sobretudo fecunda: “por meio dela as grande intuições da exegese patrística poderão voltar a dar fruto em um contexto novo”, como consegue fazer precisamente Marius Reiser.
Modestamente, reconhece: “Não pretendo afirmar que em meu livro esteja já totalmente acabada esta integração das duas hermenêuticas. Mas espero ter dado um passo em tal direção. No fundo, trata-se de retomar finalmente os princípios metodológicos para a exegese formulados pelo Concílio Vaticano II (cf. “Dei Verbum” 12), uma tarefa em que, infelizmente, pouco ou nada se fez até agora”.
No mesmo prólogo, o Papa recorda que não quis escrever uma “Vida de Jesus”. O que busca, recorda citando o primeiro volume desta obra, é apresentar “a figura e a mensagem de Jesus”.
“Poder-se-ia dizer, exagerando um pouco, que eu queria encontrar o Jesus real”. O “Jesus histórico” que alguns teólogos e exegetas apresentam “é demasiado insignificante”, “está excessivamente ambientado no passado para dar boas possibilidades de uma relação com Ele”.
Com a hermenêutica da fé e a hermenêutica histórica, o Papa tentou “desenvolver um olhar para o Jesus dos Evangelhos, um ouvi-lo que pudesse se converter em um encontro; mas também na escuta em comunhão com os discípulos de Jesus de todos os tempos, chegar à certeza da figura realmente histórica de Jesus”.
O bispo de Roma reconhece que este objetivo era mais difícil no segundo volume, porque toca os momentos culminantes da morte e ressurreição.
“Tentei me manter à margem das possíveis controvérsias sobre muitos elementos particulares e refletir unicamente sobre as palavras e as ações essenciais de Jesus. E isso guiado pela hermenêutica da fé, mas tendo em conta ao mesmo tempo, com responsabilidade, a razão histórica, necessariamente incluída nesta mesma fé”.
“Ainda que sempre ficarão naturalmente detalhes a discutir, espero no entanto que tenha podido me aproximar da figura de Nosso Senhor de um modo que possa ser útil a todos os leitores que desejam se encontrar com Jesus e crer n’Ele”, conclui.
Talvez seja este encontro que tenha suscitado a “emoção profunda” do jornalista italiano.
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Por Stefano Fontana
Finalmente podemos estar diante da obra inteira sobre Jesus de Nazaré, escrita por Bento XVI. A segunda parte pode iluminar a primeira e vice-versa. Uma obra é sempre um todo unitário e não uma simples montagem, porque é sempre o todo que dá luz às partes.
Não pudemos deixar de reconsiderar a pergunta: por que Bento XVI decidiu escrever este livro? A resposta é a mesma de antes: para mostrar que Jesus é o Messias e que esta verdade de fé e de razão ao mesmo tempo, é hoje, como sempre, o caminho rumo à Verdade e, portanto, à salvação. Nada além disso? Nada.
Bento XVI busca este objetivo em cada linha de seu livro, da introdução até a exposição da paixão, morte e ressurreição. Para poder acompanhá-lo e, portanto, poder compreender e apreciar o brilhantismo das suas observações e a genialidade das suas reconstruções, temos de aceitar o seu ponto de vista, que não é apenas histórico, mas pressupõe sempre a verdade da fé.
O grande objetivo deste livro é mostrar como a luz da fé permite compreender, até o fim, também os fatos da história, e que não é Jesus quem mostra o Messias, mas o Messias quem mostra Jesus. Os fatos permanecerão incompreensíveis sem a luz da fé. Ratzinger já havia dito na introdução do primeiro volume e continua assim durante toda a primeira parte da obra. Nesta segunda parte, confirma-se esta perspectiva.
Foquemo-nos em suas reflexões sobre a cronologia do relato da Páscoa. Os Evangelhos Sinóticos propõem uma cronologia dos acontecimentos diferente da do Evangelho de João. Para este último, a morte de Jesus ocorre na hora nona da sexta-feira, na véspera da Páscoa judaica, ao mesmo tempo que o sacrifício dos cordeiros no Templo de Jerusalém. Nos Sinóticos, porém, acontece no próprio dia da Páscoa judaica.
Do ponto de vista da fé, a versão de João é mais densa e mais cheia de significado: a Páscoa de Jesus não é a Páscoa de Israel, é uma “nova Páscoa”, porque agora o Cordeiro é Ele próprio. O fato de seu sacrifício acontecer ao mesmo tempo que o dos cordeiros é, portanto, é muito significativo teologicamente. Isso também ajuda na reconstrução histórica, enquanto as teses dos Sinóticos, aparentemente mais verossímeis, podem ser contestadas com argumentos razoáveis, em favor da versão de João. A cronologia teológica também ilumina a cronologia histórica.
Daqui se deduz também que todo o livro é uma comparação com o Antigo Testamento e com a religião judaica. Ratzinger se encarrega de mostrar como a figura de Jesus Cristo não é compreensível sem o Antigo Testamento, que Ele supera, propondo a si mesmo como o “Novo Israel”. Não se pode eliminar a antiga Lei: esta permanece e é superada com a nova Lei, que é o próprio Jesus. A dimensão social das leis do sábado não são caracterizadas pela anteposição do homem ao sábado, mas retomadas e confirmadas na Nova Aliança, uma demonstração de que Jesus se coloca como Deus.
O mesmo sucede no relato do processo contra Jesus, conduzido por Pilatos, que Bento conta nesta segunda parte. Segundo Ratzinger, a atribuição da culpa da morte do Messias aos “judeus” entendida como “povo inteiro” está equivocada. A morte de Deus não pode recair sobre os judeus e sobre seus descendentes. O motivo dessas afirmações são históricas ou teológicas? Bento parte da luz da visão teológica: o sangue derramado por Jesus não é de condenação, mas de reconciliação. Não exige vingança, mas amor incondicional.
Partindo dessa perspectiva, trata depois a análise histórica, linguística, filológica, para confrontar em terrenos, digamos, mais profanos, com a confirmação científica. Essa análise científica demonstraria que a acusação dos Evangelhos se dirigiria “aos sacerdotes do templo” e não aos judeus enquanto povo. Como se pode observar, a visão teológica e de fé não se acrescenta após o método histórico-crítico ter seguido seu curso e unido seus dados, mas os antecipa, instaurando com isso um diálogo circular.
Grandiosas, neste sentido, são as reflexões sobre a Verdade, a propósito do diálogo de Jesus com Pilatos, que lhe pergunta o que é a verdade. A resposta de Jesus é que Ele, o Cristo, é a verdade e que seu Reino não é deste mundo. Ratzinger aproveita para perguntar por que Pilatos o condenou e para estabelecer uma relação entre a Verdade de Deus e a sociedade humana. Pilatos não pode ter condenado Jesus porque o considerasse um perigo político: Ele o havia dito claramente que seu reino não era deste mundo.
Mais provável – e real – é o fato de que Pilatos pode ter sido condicionado por um temor supersticioso, encontrando em Jesus algo estranho e pelo perigo de perder sua posição no caso de um possível evento nefasto. Quanto à sociedade humana, diz Bento, esta se dá conta perante Jesus, que diz ser a Verdade, de que tem necessidade dela, para não ficar à mercê do mais forte. Também neste caso, portanto, o anúncio da verdade da fé é luz que ilumina, em uma relação circular, também a realidade histórica e humana.
Este livro de Bento XVI é muito importante. Ele afirmou que não o escreveu como Papa, mas como teólogo, e que pode ser rebatido pelos estudiosos. Também, apesar desta declaração, o livro desenvolve um papel muito importante não só para dar uma direção aos teólogos e exegetas, mas para poder entender melhor este Papa e a natureza de seu pontificado.
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*Stefano Fontana é diretor do Observatório Internacional “Cardeal Van Thuan” sobre a Doutrina Social da Igreja http://www.vanthuanobservatory.org/