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A capela em chamas.Imagens da tv
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Fonte: Revista Catolicismo
Na noite de 11 para 12 de abril de 1997, pavoroso incêndio ameaçou destruir para sempre uma das mais preciosas relíquias do mundo católico: o Santo Sudário de Turim, mortalha que envolveu por três dias o Corpo de Nosso Senhor Jesus Cristo, após sua Crucifixão até sua Ressurreição.
Só depois de longo e extenuante combate do corpo de bombeiros, o sacrossanto Linho pôde ser salvo das chamas. Além do Palácio Real, o incêndio destruiu quase completamente a capela de Guarino Guarini — contígua à Catedral de Turim — onde se encontrava a relíquia.
Alguns órgãos da imprensa italiana levantaram suspeitas de o incêndio ter sido criminoso.
Naquele momento dramático, em que tudo parecia perdido, assistimos a uma das mais belas cenas de heroísmo: o bombeiro Mario Trematore lançou-se destemidamente entre as chamas, e com uma grossa barra de ferro golpeou repetidas vezes o vidro à prova de bala que protegia a relíquia, recuperando-a em seguida. Instantes depois, a cúpula inteira da capela desabou.
Com o recuo de uma década, e tendo presente a comoção do mundo católico em vista daquela tragédia que quase se consumou, Catolicismo pediu a seu correspondente em Milão, Sr. Roberto Bertogna, que entrevistasse o Sr. Mario Trematore, a fim de que este narrasse a nossos leitores o emocionante resgate, bem como as lembranças mais significativas que tal acontecimento deixou vincadas em sua alma.
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Mario Trematore com a precisosa relíquia salva do fogo |
Catolicismo — O Sr. poderia descrever para nossos leitores o motivo que o levou a enfrentar o incêndio, sabendo bem que corria risco de morte atroz em meio às chamas?
Mario Trematore — Na vida, o cristão tem como obrigação principal dar testemunho de sua fé e reconhecer em Jesus Cristo a sua salvação, a presença que transforma o precário acontecer da existência humana na História. Presença reavivada cada dia pela lembrança de que, morrendo na Cruz, Jesus Cristo envolveu todos aqueles que crêem n’Ele. Cristo morre crucificado cada dia nos tantos acontecimentos que compõem a história do mundo, para ressurgir sempre mais presente no mistério da fé aos olhos dos homens.
Sua mão providente nos acompanha sempre. E foi essa mão que me moveu a enfrentar as chamas que ameaçavam a mais preciosa relíquia do mundo cristão. Com efeito, naquela afanosa noite passada na catedral, lutando contra as chamas para salvar o Santo Sudário, a força que me compelia a cumprir aquela missão emanava de uma voz interior, que seguramente provinha do Alto.
Catolicismo —O que o Sr. pensava no momento em que golpeava o resistente vidro do relicário que protegia o Santo Sudário?
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Lotando sob o fogo para salvar a relíquia |
Mario Trematore — Naquele apuro, quando tudo parecia perdido e a força do fogo tornava impotente todo recurso humano, continuava a esperar até o fim, e o pensamento transformava-se em ação. De uma parte, surge inesperadamente o medo de morrer, e por um breve tempo vêm à memória as pessoas mais caras e as mais belas recordações: a doçura de minha mulher Rita, o sorriso de meu filho Iacopo, a graça de minha filha Chiara.
De outra, pensava também naquele Lençol e o dever de salvá-lo. Jesus Cristo o havia deixado para a humanidade como um extraordinário sinal do mistério do Verbo encarnado e do Deus que assume toda a condição humana. Prova convincente de um significado: do amor que responde ao amor, e não da dor e daquilo que custa. Um testemunho visível da Sua Ressurreição e do infinito amor de Deus ao homem.
Catolicismo — Enquanto deparava com as chamas, o Sr. chegou a pensar que a salvação do Sudário poderia depender da fé e da coragem de alguém, e que aquela obrigação recaía sobre o Sr.?
Mario Trematore — Na noite de 11 de abril de 1997, não podia certamente pensar que tocava a mim, com os meus colegas, salvar o Santo Sudário. Naquele momento eu sentia a angústia e a preocupação de milhões de fiéis. A capela do Guarino ruía em pedaços, sob o incessante calor das chamas.
Uma das pilastras principais que sustentava a cúpula já havia se esmigalhada ao calor do fogo. Não havia muito tempo para pensar. De um momento para outro podia cair a cúpula. Precisava fazer alguma coisa. O quê?
Cada tentativa para apagar aquele maldito fogo fracassava, e assim não me restou senão rezar uma oração que havia aprendido num passado longínquo, um passado de menino com os olhos grandes e os cabelos encaracolados: “Pai Nosso, que estais no Céu…”
O modo pelo qual Deus escolhe seus instrumentos é sempre surpreendente e insondável. Deus quer ter necessidade de nossos braços e de nossas mãos para cumprir sua obra. Fico pasmo como Ele tenha querido ter necessidade dos meus braços e das minhas mãos para salvar o Santo Sudário.
Recordando aqueles momentos dramáticos, estou convencido de que o homem, reconhecendo o amor de Deus, lança-se sobre Ele com uma sensibilidade que nasce da consciência de um dever: que a grande evidência daquela Face não se perca pela fragilidade de quem crê, mas permaneça sinal de esperança para todos, pois disto tem necessidade cada homem.
Catolicismo — O Sr. teve o reconhecimento de tantas pessoas importantes e menos importantes, inclusive de João Paulo II. Sente-se um herói?
Mario Trematore — O homem não se basta a si mesmo e tem necessidade de Cristo. Falar de heroísmo pode satisfazer meu ego, mas favorece o orgulho, uma falta de confiança no Criador. Não podemos esquecer o exemplo de Jesus Cristo no Domingo de Ramos. O Filho de Deus, Ele mesmo Deus, entrou em Jerusalém montado num burrico, e não num carro dourado puxado por bonitos cavalos de raça.
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O preciosíssimo relicário é tirado do fogo |
Quem nos criou decidiu cada coisa, ainda que para nós nem tudo seja compreensível. Ainda que –– com a força das minhas mãos e uma barra de ferro, além da ajuda de meus colegas –– tenha salvo o Santo Sudário, Jesus Cristo teria reemergido daqueles escombros conosco ou sem nós.
Catolicismo — Hoje, qual o papel de Nosso Senhor Jesus Cristo em sua vida?
Mario Trematore — Eu O sinto ao meu lado, como um companheiro de viagem, mesmo nas coisas mais simples que faço. Quando caminho pela rua, faço compras, passeio pelo centro de Turim — nesses últimos anos, ainda mais bonito —, quando vou pegar os filhos na escola e quando trabalho.
A Ele faço minhas confidências, peço conselhos, junto a Ele eu me indigno com os males do mundo, e Ele me carrega quando os pés já cansados não conseguem caminhar.
Aprendi e tenho certeza de que nunca estou só. Diante do que possa acontecer em minha vida, haverá sempre Alguém com o qual poderei contar. É nessa presença constante de Nosso Senhor Jesus Cristo que encontramos a própria condição que torna o homem completamente livre.
O encontro com Nosso Senhor Jesus Cristo, através do resgate do Sudário, foi uma experiência extraordinária e me permitiu entrar em uma relação íntima com Ele. Trata-se de uma relação humanamente difícil, imperiosa, e por vezes dolorosa, pois é capaz de colocar em discussão muitas certezas.
Compreender o mal e rejeitar a indiferença para com ele a cada dia de nossas vidas, enfrentando nosso egoísmo, nossos impulsos e paixões desregradas. Amar Nosso Senhor Jesus Cristo não nos impede de sofrer. Em Lourdes, a Virgem Maria disse a Santa Bernadette: “Nesta vida prometo-lhe ensinar a amar, mas não necessariamente a ser feliz”.
É esclarecedora a passagem do Evangelho na qual Cristo foi tentado pelo demônio a transformar pedra em pão. Com efeito, Ele tinha três modos de proceder:
1º) Transformar o demônio em pedra, e com isso teria resolvido todos os problemas, seus e nossos;
2º) transformar a pedra em pão, mas desse modo Ele não teria agido como Filho de Deus, pois o verdadeiro senhor teria sido o demônio, cuja ordem Cristo teria obedecido;
3º) Cristo respondeu escolhendo o caminho mais difícil e mais doloroso, isto é, o martírio e a crucifixão, para não criar qualquer fissura que traísse o Seu amor pelo Pai.
A fragilidade do homem não recusa o pecado, aliás o pecado aliena a liberdade humana e separa o homem do encontro com Deus.
Cada cristão é submetido a essas fraquezas muitas vezes em sua vida. Não é o caso de desanimar, mas de lutar para não nos separarmos de todo o bem que Cristo nos ensinou: aprender a amar, não através dos olhos da própria cultura, mas com o coração aberto a Nosso Senhor Jesus Cristo e ao próximo.
Catolicismo — O que o Sr. recomenda aos leitores de Catolicismo para aumentar a devoção ao Santo Sudário?
Mario Trematore — Não é verdade que o racionalismo, o uso da razão como medida da realidade, seja o modo mais correto para nos aproximar da fé. Pelo contrário, quando a razão é usada de modo autêntico, escancara a alma à percepção de algo de grande que há em nós, de um mistério do qual tudo depende.
É esta “abertura do coração” que gostaria de sugerir a todos. Finalmente, peço a Nossa Senhora que todos encontrem uma ocasião, talvez um feriado prolongado, para virem a Turim venerar o Santo Sudário, mesmo que ele não seja visível (não há um ostensório solene para ele ficar exposto), mas encontra-se numa capela da nave lateral da catedral, dignamente guardado para a veneração de todos. Temos a mesma necessidade: tocar com as mãos, como São Tomé, para que o cêntuplo seja realizado, aqui e agora, e transforme as nossas vidas.
Gostaria de lembrar o que disse o Papa João Paulo II a respeito do Santo Sudário, por ocasião de sua visita a Turim: “Uma relíquia insólita e misteriosa, singularíssima testemunha — se aceitamos os argumentos de tantos cientistas — da Páscoa, da paixão, da morte e da ressurreição. Testemunha muda, mas ao mesmo tempo surpreendentemente eloqüente!”.
Catolicismo — Hoje sabemos que o Sr. não é mais um bombeiro…
Mario Trematore — Ser bombeiro era a minha paixão. Mas os anos passam e o corpo envelhecido não suporta mais o estresse e o cansaço de trabalho tão pesado e perigoso. Assim, em outubro de 2003 deixei o Corpo de Bombeiros.
Como sou diplomado em arquitetura, retomei a profissão de arquiteto, ocupando-me de projetos arquitetônicos, com especialização em segurança nos setores de risco correlatos à construção e ao curso das obras, no cargo de diretor técnico externo da Engineering Boesso, além de diretor didático do setor formativo regional da Apitforma de Turim, órgão credenciado junto à região do Piemonte, que opera nas tipologias formativas pós-universitárias.
Mas no fundo de meu coração resta um sonho, e espero que o Senhor me ajude a realizá-lo: projetar uma igreja. Cada igreja é uma casa de Deus, e não pode ser senão bela, como afirmava em 1400 Leon Battista Alberti, renomado arquiteto italiano, no seu “De re aedificatoria”.
“Senti dentro de mim qualquer coisa superior que me guiava”
Ao ser perguntado em que momento decidira intervir, arriscando a vida para, num gesto de audácia e heroísmo, resgatar o Sudário das chamas, Mario Trematore declarou à imprensa:
“Quando decidi intervir? Quando vi que tudo estava para desabar. Nesse momento disse aos meus rapazes: vamos, temos de salvar o Sudário.
“Em certo momento senti algo dentro de mim, qualquer coisa superior que me guiava. E como se tivesse encontrado força naquele símbolo, o símbolo do Sudário, peguei uma marreta e comecei a golpear o vidro antibalas. Golpeava, golpeava e golpeava, mas aquele vidro não caía. Talvez lhe tenha golpeado cem vezes antes de destruí-lo.
“Finalmente cedeu. Devo ter feito isso num quarto de hora, nem um ladrão teria sido tão veloz. E sabe por que? Porque tinha uma convicção fortíssima e graças a ela me crescia a força.
“Tive um pouco de medo. Mas naquele momento creio que Deus me deu força para salvar o Santo Lençol. De outra forma não teria conseguido romper aquele vidro que resiste até a projéteis”.
“Se tivesse sido um outro objeto, um quadro de valor inestimável, quem sabe, de Giotto ou de Miguel Angelo, não teria movido um dedo. Nós nos arriscamos muito, muitíssimo, talvez tenhamos sido até inconscientes, mas devíamos salvar o Sudário“.