Atenção, o artigo está escrito em português de Portugal. Alguns termos são Lusitanos.
Quando vem ao mundo o primeiro filho, o amor espontâneo dos pais encontra-se saturado da procura de si mesmo. O primeiro filho é objeto de orgulho, porque ter dado ao mundo um homem é uma obra prodigiosa. Todos os sinais de personalidade humana que sucessivamente vão surgindo, à medida que o filho se desenvolve, são, para os pais, motivo de assombro, de alegria, de novo orgulho.
Isso é natural e continua grandemente saturado de egocentrismo.
Mas à medida que o filho cresce, à medida que os filhos se multiplicam, o amor dos pais deve alargar-se e depurar-se, porque a perfeição do amor paternal cifra-se num amor que, em todos os pormenores, só procura o bem do filho.
E, para começar, os pais devem organizar de algum modo a sua própria retirada, ensinando os seus filhos a viver sem eles.
Baseando-se o amor paterno no vínculo que une os filhos aos pais, estes consideram espontaneamente os filhos como alguma coisa de si próprios, e a tendência natural que se enxerta neste sentimento é a de desejar que os filhos dependam deles e da sua vontade, pouco mais ou menos como se fossem seus membros. Não nos podemos, pois, admirar de uma certa inclinação para a tirania, e de uma tendência – que ainda os melhores pais podem manifestar – de querer que os filhos não possam ter um pensamento, fazer um gesto, tomar uma decisão sem que eles lhos ditem.
É por isso que os pais, ainda os melhores, devem estar de sobreaviso em relação a si mesmos. Somos todos mais ou menos carnais: e o amor carnal absorve em vez de dar, porque não tende para o bem do amado, mas do amante. Procura a dependência do amado, procura cercá-lo por todos os lados, tece os laços de maneira que o amado só o possa ter a ele, na sua vida, só pense nele, só se ocupe dele, atue apenas por sua inspiração.
Mas a arte da educação consiste, primeiramente, em ensinar o filho a conduzir-se por si mesmo. O educador deve, portanto, formar o filho no uso progressivo da liberdade, favorecer nele o desenvolvimento da iniciativa e da decisão.
Desenvolvimento progressivo, evidentemente. O filho nasce inteiramente dependente; compete aos seus educadores libertá-lo pouco a pouco. Mas é preciso que os educadores tenham um raro domínio de si próprios para ministrar a liberdade aos que deles dependem.
Em cada família se reproduz, – ou tende a reproduzir-se em pequena escala – ” o que se passa com os Estados: os governantes começará por recusar aos súditos a liberdade, sob pretexto de que farão mau uso dela, e uma vez que fizeram tudo para que os seus súditos não pudessem aprender a servir-se dela, veem-se, não obstante, obrigados a conceder-lhe, mostrando-se triunfantes ao verificar que, com efeito, o povo faz mau uso da liberdade.
Do mesmo modo, há muitos pais que, sob o pretexto de proteger os filhos contra os perigos, lhes negam toda a oportunidade de experiências progressivas que os formem no sentido da responsabilidade: desde os três ou quatro anos, com efeito, a criança pode decidir em certas coisas – ainda que seja num jogo -, e é necessário habituá-la a fazê-lo.
É igualmente necessário que a criança possa e deva decidir-se em questões indiferentes, nas quais nenhum princípio está em jogo, porque impor-lhe nestes assuntos a vontade dos pais é impor-lhe o seu capricho. E a arbitrariedade sem justificação deforma, quer abafando as veleidades de independência que deveriam desenvolver-se para que pudessem gerar um sentido da responsabilidade e de dignidade ou respeito de si próprio, quer levando este começo de personalidade à revolta. Muitas vezes, as crianças que foram reprimidas na sua juventude acabam por cometer excessos ou erros no dia em que, de boa ou de má vontade, é preciso confiar-lhes o cuidado de si próprio; e muitas vezes também, os pais veem nisso a justificação do seu método de educação, quando, pelo contrário, é precisamente isso o que o torna condenável.
A este respeito, os novos métodos de educação, mais favoráveis ao desenvolvimento da espontaneidade, representam um progresso provavelmente importante sob o ponto de vista geral do desenvolvimento do gênero humano. Não impor à criança uma perfeição irreal que nenhum adulto pratica, não lhe impor que se cale ou que esteja quieta, sempre que nada o exige, a não ser o capricho ou a tranquilidade dos pais – tudo isso coloca a criança num ambiente de vida sã.
Para favorecer a aprendizagem da personalidade, devem, pois, os pais, em primeiro lugar, deixar que a criança corra as aventuras da vida, dentro dos limites que convém à sua idade – que corra as aventuras da vida e sofra as consequências dos seus atos… Correr as aventuras da vida é, para o bebé, explorar o parque infantil a que o levaram; sofrer as consequências dos seus atos, é ter de apanhar o brinquedo que deixou cair, ou fazê-lo perder momentaneamente aquele que deitou fora. As aventuras da vida podem estar limitadas, aos sete anos, pelos muros de um jardim; aos dez, pelos limites do bairro; aos quinze, pelo raio de alcance da bicicleta. Os pais devem mesmo, por vezes, levar o filho a fazer experiências; se é tímido ou de natureza linfática, introduzi-lo, por exemplo, num grupo de rapazes em que possa acamaradar. De uma maneira geral, devem, por outro lado, cuidar de que tenha companheiros da sua idade e intervir discretamente, sem que o filho o note, para o pôr em contato com os bons companheiros ou para o afastar dos maus.
Mas tudo isto exige um amor muito puro, sem egoísmo. Tanto mais que o mundo da criança tem dimensões diferentes do mundo das pessoas crescidas. Os gostos da criança, os seus entusiasmos, a sua escala de valores, são diferentes. É mais espontânea e mais viva, menos susceptível e mais irritável; os seus sentimentos facilmente despertam e facilmente se perdem; a sua atenção é mais fácil de cativar, e mais depressa se fatiga. É indiferente à riqueza e à posição social, à distinção e à vulgaridade, mas ama o pitoresco, o que dá nas vistas, cores berrantes, formas extraordinárias; ama também o barulho. É fundamentalmente caprichosa.
Sendo caprichosa, agrada-lhe aquilo que as pessoas crescidas denominam desordem. Agrada-lhe um quarto, quando pelos quatro cantos espalhou os seus brinquedos e voltou os móveis de pernas para o ar. Gosta mais de uma cadeira com as pernas partidas e senta-se com maior prazer nas costas ou nos braços de um fauteuil do que no assento. Adora o barulho: corre e salta, mas detesta andar. Os pais devem permitir ao filho viver como criança. É certo que há crianças que não são assim. Mas a essas, falta-lhes geralmente alguma coisa – falta de saúde ou defeito de educação. É desses que se diz, quando já são crescidos, que nunca foram crianças; e é uma infelicidade.
A criança, para ser ela mesma, deve viver no seu meio de criança. A que vive com os mais velhos deforma-se e não desabrocha. É o mal dos filhos únicos, se os pais não têm o cuidado de os afastar de si. O filho único converte-se facilmente num pequeno velho. Os pais extasiam-se com a precocidade das suas reflexões, a seriedade das suas palavras: no fundo, trata-se de um mimetismo impessoal. Fala como se fala à sua volta, sem chegar a compreender o que diz, e não se desenvolve progressivamente de acordo com as leis da sua idade e passando pelas etapas normais da formação. Não é para desejar nem para admirar que a criança de dez anos fale como um homem de trinta. Para que aos trinta anos seja um homem completo, é preciso que aos dez anos fale, pense, atue como uma criança de dez anos.
O são desenvolvimento da criança exige que ela cresça entre as outras crianças e tenha no meio destas a aprendizagem da sua vocação de homem. É entre os seus iguais que a criança adquire a sua importância e o seu valor de homem, o seu peso. O miúdo de dez anos, o adolescente, entre os da sua idade, fala com autoridade. Entre pessoas crescidas, particularmente com os pais, deve contentar-se com receber.
A ação dos pais deve, portanto, orientar-se no sentido de que o filho tenha a sua vida autônoma: não o conseguirão sem um rigoroso controle de si próprios. A razão de ser dos filhos não está na satisfação dos pais; o filho é para si mesmo, é para a obra que mais tarde deverá realizar. A educação tem por finalidade prepará-lo para isso. E não tem outra.
Mas se a educação exige que se permita à personalidade do filho manifestar-se, não exige menos uma disciplina, porque a sua segunda exigência fundamental é a formação do domínio de si mesmo. O valor humano pressupõe um equilíbrio entre a espontaneidade e a disciplina. O filho deve poder desenvolver a sua espontaneidade no seu meio de criança. Por outro lado, deve outro tanto poder aceitar as leis das pessoas crescidas.
Em certos lugares e em certas situações, a criança deve respeitar o código das pessoas adultas, com a condição de que, noutros lugares e noutras circunstâncias, lhe permitam que viva segundo a sua lei. Muitas vezes deverá permanecer junto dos pais, mas não sempre.
Sob o pretexto de respeitar a espontaneidade do filho, não devem os pais pôr-se ao seu serviço. A criança deve ter domínios onde possa estabelecer a sua ordem: não é preciso que a imponha em toda a parte. E deve ser formada não só na modéstia, mas também na disciplina; não deve julgar-se pessoa importante; não se lhe deve prestar demasiada atenção. Os pais enganam-se e agem contra o interesse do filho quando se curvam a todos os seus caprichos.
Há famílias em que o filho é uma espécie de rei. Os pais conversam com uma visita, mas, se chega o filho, tudo pára, só a ele se presta atenção, é ele quem dirige a conversa, extasiam-se com tudo o que ele diz ou faz; pode pôr tudo de pernas para o ar, que só haverá gritos de admiração pela sua inteligência e pelo seu espírito inventivo. Essas crianças estão mal educadas e correm o risco de não estarem aptas para enfrentar a vida.
Mas esta disciplina, repetimos, deve ser estabelecida no interesse do filho, não no dos pais; deve exprimir uma lei racional, não o capricho de pessoas adultas. Deve-se fazer calar a criança quando é razoável que ela se cale, ralhar-lhe quando é razoável que se ralhe, não gritar alto para descarregar os nervos para, momentos depois, a sufocar com carícias. A criança não é um brinquedo. Recompensas e castigos devem derivar da sua conduta, não da disposição dos mais velhos. Também nisso precisam os pais de um grande domínio de si mesmos.
Os pais devem, pois, resignar-se com que os filhos perturbem a perfeita ordem da sua vida: uma casa em que crescem algumas crianças não pode estar tão meticulosamente cuidada como uma casa de pessoas velhas e sem filhos. E devem resignar-se também com que os filhos os deixem, e ficar contentes de que os deixem; e isto se deverá acentuar cada vez mais até ao dia em que o filho os deixará para sempre a fim de concentrar a sua vida em alguém que nada fez para ele, a quem não está ligado por nenhuma dívida de reconhecimento, a quem, contudo, vai unir a sua vida e colocar daí por diante acima dos pais – acima dos pais a quem tudo deve!… um estranho, uma estranha! – e também se resignarão de que se consagre de corpo e alma à mulher e aos filhos, quase esquecendo os pais… Quantos dramas porque os pais não querem renunciar aos seus filhos, porque procuram impedi-los de se casarem… O pai que se indigna porque um desconhecido pretende arrebatar-lhe a filha que ele educou, criou e cercou de cuidados e de afectos! A mãe que não pode suportar que a filha pertença toda a quem a desposou, e que se intromete, pretendendo defender a sua filha – a clássica sogra!… E os pais que não querem que os filhos se casem novos, já que, depois de terem sofrido tanto para os criar, deveriam ao menos poder gozar da sua companhia por alguns anos…
Mas este drama, que se descobre frequentemente na altura do casamento, foi precedido de uma série de pequenas tragédias domésticas que tiveram começo logo que o filho, por vezes muito novo ainda, experimentou o desejo de fazer alguma coisa por si mesmo. E ainda o mais trágico são os filhos cuja personalidade está de tal modo abafada pelo amor devorador dos seus pais que se sentem satisfeitos numa atmosfera de estufa, onde nada há que possa robustecer as articulações do seu corpo ou da sua alma.
Além disso, a educação exige dos pais um contínuo esforço de adaptação, ainda que seja apenas para se aperceberem do crescimento dos filhos. Porque estes mudam com uma rapidez que desconcerta as pessoas mais velhas. Uma criança de dez anos já não é bem o mesmo ser que uma criança de cinco. E o adolescente de quinze olha de muito alto o miúdo de dez, enquanto que, no mesmo tempo, o homem de quarenta anos chegado aos quarenta e cinco não mudou praticamente nada.
Como continuam sempre os mesmos, os pais têm dificuldade em compreender que, mais ou menos de dois em dois anos, uma verdadeira revolução se opera na vida do filho, até à adolescência. E tendo adquirido o hábito de o tratar como miúdo no começo da sua vida, eles continuam sempre atrasados perante o facto da sua evolução, a não ser que mantenham uma grande vigilância sobre si mesmos.
Conhecemos pais e mães que falam do seu “menino”, referindo-se a um filho de vinte anos, alto como uma torre… E vêem-se pais ficar estupefactos quando os seus filhos lhes falam em se casar, numa idade… que era a deles próprios, quando se casaram! Mil pequenas coisas como estas explicam os conflitos entre pais e filhos. A missão de pai é uma missão delicada, que exige uma vigilância incessante, Estar de sobreaviso, não somente em relação aos filhos – talvez nem sequer de modo particular em relação aos filhos – mas em relação a si próprio, exigindo renúncia e autodomínio a cada instante. É essa a regra eterna do amor: dar-se e viver para o amado. Os pais que são verdadeiros pais dão-se constantemente e nada recebem nem pedem nada. São esses os pais que recebem de seus filhos atenções, ternura e cuidados.
Os filhos para os quais se constituiu um lar acolhedor e onde ninguém os procura reter, voltam a ele gostosamente. Os que se tentam reter com autoridade procuram meio de se evadir. O apego à família não é proporcional ao número de horas que nela se vive, mas à felicidade que nela se encontra. O rapaz e a moça que sempre voltam ao lar com agrado, mas que raras, vezes aí se encontram, porque mil ocupações os solicitam lá fora, têm frequentemente mais espírito do que aqueles que se vêem obrigados a ficar no lar só para fazer companhia aos pais.
Há lares onde, sob pretexto de espírito de família, os filhos devem passar a noite “em família”, quer dizer num quarto comum, onde o pai fatigado dormita sobre um jornal e proíbe que se faça barulho! Muitas das chamadas boas famílias são simplesmente famílias onde todos se aborrecem. E não é este o verdadeiro meio de despertar nos filhos o amor do lar, nem de lhes deixar uma boa recordação da sua juventude… Mas os pais que sabem aceitar que os filhos os deixem para seguir o seu caminho, que sabem interessar-se por eles, ouvir as suas histórias de meninos e de adolescentes, responder às suas perguntas, que entram na sua vida sem a constranger e aceitando que os filhos sejam primeiramente crianças, e depois adolescentes – com tudo o que isto pressupõe de qualidades e defeitos -, que não lhes exigem uma perfeição que eles próprios não praticaram -, esses pais têm uma alegria profunda, a grande alegria paternal de possuir a confiança de seus filhos, de os ver voltar para junto de si com um prazer sempre renovado e, à medida que crescem, de os ver, cada vez mais, testemunhar, pelo seu afeto e atenções, que os seus pais representam para eles o maior amor que porventura se debruçou sobre as suas vidas.
E se os pais souberem formar os seus filhos, têm a alegria de os ver crescer e dar os frutos que correspondem às suas diferentes personalidades, de os ver, por seu turno, fundar lares e dar-lhes netos, de ver outros elevar até Deus, pela sua vocação religiosa, a oferenda da família, de ver deste modo a sua obra prolongar-se e estender-se e de se encontrarem, na velhice, envolvidos pelo abraço de todos estes afetos.
Afirmou-se mais acima que os filhos deixam os pais para se casar; é verdade, mas deixam-nos para regressar duma outra maneira, graças à qual os pais lhes aparecem como os conselheiros mais seguros e mais desinteressados, como o afeto mais puro. Os pais já não ocupam o mesmo lugar material na vida dos seus filhos adultos, mas conservam um lugar de afeto que ninguém mais pode substituir. Para nenhum de nós, já o disse, o seu pai ou a sua mãe são como um homem qualquer ou como uma mulher qualquer, e este vínculo moral entre pais e filhos, quando purificado pela caridade cristã, é uma das mais altas perfeições humanas e uma das fontes mais doces de alegria.
(Jacques Leclercq)