“Deus é bom comigo, me dá uma dose sadia de inconsciência. Vou fazendo o que tenho que fazer”. “Uma coisa que me disse desde o primeiro momento foi: “Jorge, não mudes. Segue sendo você mesmo, porque mudar nesta idade seria ridículo”.
Essas são algumas frases proferidas pelo Papa Francisco, que cumpre 21 meses de pontificado, na entrevista concedida à jornalista Elisabetta Piqué, publicada pelo jornal argentino La Nación, 07-12-2014. A tradução é do IHU On Line.
Para América Latina é fonte de orgulho ter o primeiro papa não europeu. O que o senhor espera da região?
América Latina está percorrendo um caminho. E isto faz tempo, ou seja, desde a primeira reunião do Conselho Episcopal Latino-Americano – CELAM, desde a criação do Celam. Dom Larraín, o primeiro presidente do Celam, deu-lhe um grande impulso. Foi a conferência do Rio, depois Medellín, depois Puebla, Santo Domingo e Aparecida.
São marcos que o episcopado latino-americano foi construindo, colegialmente, com metodologias diferentes, primeiramente de modo tímido. Mas este caminho de 50 anos não pode ser ignorado porque é um caminho de tomada de consciência de uma Igreja na América Latina e de maturação na fé. Juntamente com este caminho, se desprendeu também uma grande preocupação em estudar a mensagem guadalupana. A quantidade de estudos sobre a Virgem de Guadalupe, sobre a imagem, sobre a mestiçagem, sobre o NicanMopoua, é impressionante, é uma teologia de fundo. Por isso ao celebrar do Dia da Virgem de Guadalupe, padroeira da América, no dia 12 de dezembro, e os 50 anos da Misa Criolla, estamos comemorando um caminho da Igreja Latino-Americana.
Um recente pesquisa na região (do Pew Research Center) mostra que, apesar do “efeito Francisco”, há católicos que seguem abandonando a Igreja.
Conheço as estatísticas que deram em Aparecida. Este é o único dado que tenho. Evidentemente, há vários fatores que intervêm nisso, externos à Igreja. Por exemplo, a teologia da prosperidade inspira muitas propostas religiosas que atraem as pessoas. Mas logo as pessoas ficam na metade do caminho. Mas deixando de lado os fatores externos, me pergunto: quais são as nossas coisas, dentro da Igreja, que não deixam os fieis satisfeitos? É a falta de proximidade e o clericalismo.
A proximidade é o chamado hoje ao católico, a sair e fazermo-nos próximos das pessoas, dos seus problemas, das suas realidades. O clericalismo, eu disse aos bispos do Celam no Rio de Janeiro, freou a maturidade laical na América Latina. Onde os leigos são mais maduros na América Latina é na expressão da piedade popular. Mas as organizações leigas sempre tiveram problemas com o clericalismo. Eu falei disto na Evangelii Gaudium.
A renovação da Igreja para a qual o senhor aponta também para a busca destas “ovelhas perdidas” e a frear essa sangria de fieis?
Não gosto de usar essa imagem da “sangria” porque é uma imagem muito ligada ao proselitismo. Não gosto de usar termos ligados ao proselitismo porque não é a verdade. Gosto de usar a imagem do hospital de campanha: há pessoas muito feridas que estão esperando que nós curemos as feridas, feridas por mil motivos. E é preciso sair a curar feridas.
Essa é a estratégia, então, para recuperar os que vão embora?
Não gosto da palavra “estratégia”, mas eu chamaria de chamada pastoral do Senhor. Caso contrário, parece uma ONG… É o chamado do Senhor, é o que Ele hoje pede à Igreja, não como estratégia, porque a Igreja não faz proselitismo. A Igreja não quer fazer proselitismo porque a Igreja não cresce por proselitismo, mas por atração, como disse o Papa Bento. A Igreja deve ser um hospital de campanha e sair para curar feridas, como o bom samaritano. Há pessoas feridas por desatenção, por abandono da própria Igreja, pessoas sofrendo horrores…
O senhor é um papa que costuma falar de maneira direta, o que ajuda a deixar claro o rumo do seu pontificado. Por que acha que há setores que estão desorientados, que dizem que ‘o barco está sem timoneiro”, sobretudo depois do sínodo sobre a família?
Estranho essas expressões. Não me consta que elas tenham sido ditas. Na mídia aparecem como que se tivessem sido ditas. Mas, até que eu pergunte ao interessado: “O senhor disse isto?”, mantenho a dúvida fraternal. Mas, geralmente, é porque não lêem as coisas. Uma vez alguém me disse: “Sim, claro, isto do discernimento é bom que se faça, mas precisamos coisas mais claras”. E eu lhe disse: “Olha, eu escrevi uma encíclica, é verdade, que a quatro mãos, e uma exortação apostólica. Continuamente estou fazendo declarações, fazendo homilias e isso é magistério. Isso que está aí é o que eu penso, não o que a mídia diz é o que eu penso. Vá até aí e vai encontrar e está bem claro; Evangelii Gaudium é muito clara.
Na mída, alguns falaram do ‘fim da lua de mel” pela divisão que veio à luz no sínodo…
Não foi uma divisão tipo ‘estrella’ contra o Papa. Ou seja, não tinham como referência o Papa. Porque aí o Papa procurou abrir o jogo e escutar a todos. O fato de que, no final, meu discurso tenha sido aceito tão entusiasmadamente pelos padres sinodais indica que o problema não era o Papa, mas entre as diferentes posturas pastorais.
Sempre que há uma mudança de status quo, como foi sua chegada ao Vaticano, é normal que haja resistências. Pouco mais de 20 meses, esta resistência, silenciosa no começo, para se tornar mais evidente…
A palavra foi dita pela senhora. As resistências agora se evidenciam, mas para mim é um bom sinal, que elas sejam ventiladas, que não as digam às escondidas, quando alguém não está de acordo. É sadio as coisas sejam ventiladas. É muito sadio.
A resistência tem a ver com a limpeza que o senhor está fazendo, com a reestruturação interna da cúria romana?
Considero as resistências como pontos de vista diferentes, não como coisa suja. Elas tem a ver com decisões que vou tomando. Isto sim. Claro, há decisões que tocam algumas causas econômicas, outras mais pastorais…
Está preocupado?
Não, não estou preocupado. Parece-me tudo normal, porque seria anormal se não existissem pontos divergentes. Seria anormal que não saísse nada.
O trabalho de limpeza terminou ou segue?
Não gosto de falar de “limpeza”. Trata-se de fazer marchar a cúria na direção que as congregações gerais (as reuniões que antecedem o conclave) pediram. Não, para isto falta ainda muito. Falta, falta. Porque, nas congregações gerais pré-conclave, os cardeais pedimos muitas coisas e é preciso andar avante em tudo isso…
O que precisou limpar foi pior do que esperava?
Em primeiro lugar, eu não esperava nada. Esperava voltar para Buenos Aires (risos). E depois acho que, não sei, Deus nisso é bom para comigo, me dá uma dose sadia de inconsciência. Vou fazendo o que tenho que fazer.
Mas como anda o trabalho em curso?
Bom, é tudo público, se sabe. O IOR (Instituto para as Obras de Religião) está “funcionando fenômeno” e se fez bastante bem isto. No que se refere à economia, está indo bem. E a reforma espiritual é o que neste momento me preocupa mais, a reforma do coração. Estou preparando a alocução de Natal para os membros da cúria; farei duas saudações natalícias. Uma com os prelados da cúria e outra com todo o pessoal do Vaticano, com todos os dependentes, na Aula Paulo VI, com suas famílias, porque eles também levam as coisas para frente. Os exercícios espirituais para prefeitos e secretários são um passo para a frente. É um passo importante que estejamos seis dias fechados, rezando e, como no ano passado, faremos na primeira semana da Quaresma. Na mesma casa.
Na semana que vem reúne-se novamente o G-9 (o grupo de 9 cardeais consultores que ajudam o Papa no processo de reforma da cúria e no governo universal da Igreja). A famosa reforma da cúria estará pronta em 2015?
Não, o processo é lento. Outro dia tivemos uma reunião com os chefes dos dicastérios e foi apresentada a proposta de juntar os dicastérios dos Leigos, Família, Justiça e Paz. Houve a discussão, cada um expressou o que lhe parecia, e agora isto volta para o G-9. Ou seja, a reforma da cúria leva muito tempo, é a parte mais complexa…
Quer dizer que não estará pronta em 2015?
Não, ela vai se fazendo passo a passo.
É certo que um casal poderia estar à frente deste novo dicastério que juntaria os Pontifícios Conselho de Leigos, da Família e de Justiça e Paz?
Pode ser, não sei. Na frente dos dicastérios ou da secretaria estarão as pessoas mais aptas, seja homem, seja mulher, ou um casal…
E não, necessariamente um cardeal ou bispo…
Em cima, num dicastério como a Congregação para a Doutrina da Fé, da Liturgia ou no novo que juntará Leigos, Família e Justiça e Paz, sempre estará na frente um cardeal. Convém que seja assim pela proximidade com o Papa como colaborador neste setor. Mas os secretários de discastério não precisam ser bispos, porque um problema que temos aqui surge quando precisamos mudar um secretário-bispo. Onde o mandamos? É preciso encontrar uma diocese, mas às vezes eles não são aptos para uma diocese, mas sim para o trabalho que fazem como secretários. Somente nomeei dois bispos secretário: o secretário do Governatório do Vaticano, para nomeá-lo pároco de tudo isto, e o secretário do sínodo dos bispos, pelo que significa a episcopalidade ali.
Foi um ano intenso: muitas viagens importantes, o sínodo extraordinário, a oração pela paz no Oriente Médio nos jardins do Vaticano… Qual foi o melhor momento e qual o pior?
Não sei dizê-lo. Todos os momentos têm algo de bom e algo que não é tão bom, não? (silêncio). Por exemplo, o encontro com as avós, com os anciãos, foi de uma beleza impressionante.
Também estava o Papa Bento…
Gostei muito desse encontro, mas não foi o melhor porque todos são lindos. Não sei, mas me vem isto. Nunca pensei nisso.
E de ser Papa, o que gosta mais e o que mais lhe desgosta?
Uma coisa, e isto é verdade e isto quero dizer: antes de vir para cá, eu estava me retirando. Ou seja, quando voltasse para Buenos Aires, combinara com o núncio de fazer a terna para que no final desse ano (2013), assumisse o novo arcebispo. Tinha a cabeça focada nos confessionários das igrejas onde iria trabalhar. Inclusive estava no projeto de passar dois ou três dias em Luján e o resto em Buenos Aires, porque Luján para mim me diz muito, e as confissões em Luján são uma graça. Quando vim para cá, tive que começar tudo de novo. E uma coisa eu me disse desde o primeiro momento: “Jorge não mudes, segue sendo você mesmo, porque mudar nesta tua idade te tornaria ridículo”. Por isso tenho mantido o que fazia em Buenos Aires. Com os erros que isto pode ter. Mas prefiro andar assim como sou. Evidentemente, isto produziu algumas mudanças nos protocolos, não nos oficiais porque estes eu observo bem. Mas meu modo de ser mesmo nos protocolos é o mesmo que em Buenos Aires, ou seja, esse “não mudes” enquadrou bem a minha vida.
Na volta da Coreia do Sul, respondendo a uma pergunta o senhor disse que em dois ou três anos esperava “ir à casa do Pai” e muitas pessoas ficaram preocupadas com o seu estado de saúde, pensando que estava doente ou algo parecido. Como o senhor está? Como se sente? Eu o vejo muito bem…
Tenho os meus achaques e nesta idade se sentem os achaques. Mas estou nas mãos de Deus, até agora consigo levar um ritmo de trabalho mais ou menos bom.
Um setor conservador nos EUA acha que o senhor tirou o cardeal tradicionalista norte-americano Raymond Leo Burke do Supremo Tribunal da Assinatura Apostólica por ser o líder de um grupo de resistência a qualquer tipo de mudança no sínodo dos bispos… É verdade?
Um dia o cardeal Burke me perguntou o que iria fazer, já que eu não o confirmara no cargo, na parte jurídica, estava com a fórmula donec alitur provideatur (“até que se disponha outra coisa”). E lhe disse: “Dê-me um pouco de tempo porque no G-9 se está pensando na reestrugução jurídica”, e lhe expliquei que ainda não havia nada feito e que se estava pensando. E depois surgiu a questão da Ordem de Malta e aí tinha a necessidade de um americano vivo, que pudesse se mover neste âmbito e me ocorreu o nome dele para esse cargo. Eu lhe propus isto muito antes do sínodo. E lhe disse: “Isto vai ser depois do sínodo porque quero que o senhor participe do sínodo como chefe de dicastério” porque como capelão de Malta não podia. E bem, me agradeceu muito, em bons termos e aceitou. Até gostou, me parece. Porque ele é um homem de mover-se muito, de viajar e ai vai ter trabalho. Ou seja, não é certo que o tirei pela maneira como se comportou no sínodo.
O senhor tem planos para o seu 78º aniversário, no dia 17 de dezembro? Vai festejar com os barboni (sem teto) como no ano passado?
Não convidei os barboni. Quem os trouxe foi o esmoleiro. E foi um gesto bom. Aí se construiu o mito de que eu tomara o café da manhã com os barboni. Mas eu tomei o café da manhã com todas as pessoas da casa e estavam aí barboni. São essas coisas folclóricas que se criam de mim… Como o aniversário cai num dia em que não tenho missa na capela, porque é quarta-feira e tem a audiência geral, vamos almoçar juntos com todos os empregados da casa. Para mim, vai ser um dia totalmente normal. como todos os outros dias.