Massimo Borghesi, filósofo italiano com uma longa carreira na cátedra universitária, estudos e publicações, apresentará nos próximos dias ao público o resultado de uma obra que estava faltando. E essa lacuna estava nas origens de aproximações e desconhecimentos. Uma full immersion nas fontes primárias que alimentavam ao longo do tempo o modo de ver e pensar daquele que hoje ocupa a cátedra mais alta da Igreja católica.
Para realizar sua pesquisa, Borghesi recebeu uma ajuda decisiva, precisamente a do sujeito pesquisado, que contribuiu com cinco gravações de áudio. “Através de um amigo comum, Guzmán Carriquiry, vice-presidente da Pontifícia Comissão para a América Latina, pude tirar proveito da gentileza do Papa Francisco e enviar-lhe algumas perguntas”, revela o autor. O resultado do trabalho poderá ser conhecido dentro de alguns dias, apresentado pela editora Jaca Book com o título Jorge Mario Bergoglio. Uma biografia intelectual. Dialética e mística.
Na sequência, apresentamos algumas pistas do que o leitor vai encontrar no livro de Massimo Borghesi, obtidas com a cumplicidade da amizade.
O que o levou a fazer essa pesquisa sobre o pensamento do Papa?
O preconceito, sobretudo no ambiente intelectual e acadêmico, que persiste sobre a imagem do pontificado. O Papa Francisco teve que assumir o difícil legado de Bento XVI, um dos grandes teólogos do século XX. Depois de um pontificado com uma forte marca no plano intelectual, o estilo pastoral de Bergoglio parecia demasiado “simples” para muitos, inadequado para os grandes desafios do mundo metropolitano e secularizado. O Papa que veio do fim do mundo é censurado, na Europa e nos Estados Unidos, de não ser “ocidental”, europeu, culturalmente preparado.
Quando você entendeu que não era assim?
A leitura “tensionante”, dialética, que Gaston Fessard faz de Santo Inácio está na origem do pensamento de Bergoglio
Pessoalmente, eu tinha lido alguns textos de Bergoglio que tinham chamado muito a minha atenção. Entre eles, alguns discursos da segunda metade da década de 1970, quando Bergoglio era o jovem provincial dos jesuítas argentinos. Eles me causaram uma boa impressão. O que me impactou sobremaneira foi o “pensamento” que dava sustentação aos seus argumentos. Bergoglio dirigia-se aos seus irmãos jesuítas que estavam vivendo uma situação dramática e dolorosa. A Argentina dessa época era governada pelos militares, que praticavam uma sangrenta repressão à frente revolucionária dos Montoneros. Em relação a este conflito, a Igreja estava profundamente dividida entre os apoiadores do governo e aqueles que apoiavam a revolução.
Para Bergoglio, esta fratura da sociedade também colocava em cheque a Igreja, que tinha sido incapaz de unir o povo. Seu ideal era o catolicismo como coincidentia oppositorum, como superação dessas oposições que, quando radicalizadas, tornam-se contradições insuperáveis.
Bergoglio expressava esse ideal através de uma filosofia própria, uma concepção segundo a qual a lei que governa a unidade da Igreja, assim como a social e a política, baseia-se numa dialética “polar”, em um pensamento “agonista” que mantém unidos os opostos sem anulá-los ou reduzi-los forçosamente ao uno. Multiplicidade e unidade constituíam os dois polos de uma tensão ineludível. Uma tensão cuja solução era confiada, uma e outra vez, ao poder do Mistério divino que atua na história.
Esta perspectiva que emergia nas entrelinhas dos discursos do jovem Bergoglio me interessou imediatamente. Associado aos pares polares que o Papa coloca no Evangelii Gaudium constituía uma verdadeira “filosofia” própria, um pensamento original. Tendo estudado minuciosamente a dialética de Hegel e, acima de tudo, a concepção da polaridade em Romano Guardini, essa perspectiva me interessou imediatamente. Era evidente que Bergoglio tinha uma concepção original, um ponto de vista teológico-filosófico que, curiosamente, não chamou a atenção dos estudiosos.
O Papa deu uma contribuição pessoal ao seu trabalho de pesquisa com gravações que ele lhe enviou. O que lhe permitiu determinar essa contribuição?
Através de amigo em comum, Guzmán Carriquiry, vice-presidente da Pontifícia Comissão para a América Latina, pude tirar proveito da gentileza do Papa Francisco e enviar-lhe algumas perguntas. Depois de ler seus escritos, com efeito, colocava-se a questão sobre a gênese de sua dialética polar. Era uma leitura muito original da realidade que oferecia analogias com o tomismo hilemórfico e dialético de Alberto Methol Ferré, principal intelectual latino-americano da segunda metade do século XX. Mas Methol Ferré não estava na origem do pensamento de Bergoglio. Os caminhos de ambos se encontram apenas no final dos anos 70, durante a preparação da grande Conferência de Puebla da Igreja Latino-Americana.
Então, de onde Bergoglio tira a sua ideia da tensão polar como lei do Ser? Sobre este ponto, que é central, os artigos e livros não ofereciam nenhuma pista. É como se Bergoglio quisesse manter o segredo sobre a fonte do seu pensamento. É aqui que as respostas do Papa se revelaram fundamentais. Graças a elas, pude entender que o ponto de partida do seu pensamento deve ser situado nos anos de estudos no Colégio San Miguel, quando Bergoglio reflete sobre a teologia de Santo Inácio através do modelo da “Teologia do como se” e, sobretudo, através da leitura, determinante, do primeiro volume de La Dialectique des Exercices Spirituels de Saint Ignace de Loyola [A dialética dos Exercícios Espirituais de Santo Inácio de Loyola] de Gaston Fessard. A leitura “tensionante”, dialética, que Fessard faz de Santo Inácio está na origem do pensamento de Bergoglio. Para mim, foi uma verdadeira descoberta.
Quais são as influências europeias mais fortes sobre o Papa, aquelas que ele assimilou e deixaram uma marca na estrutura do seu pensamento?
O Michel De Certeau que interessa a Bergoglio é o dos anos 60, o estudioso da mística moderna, de Surin a Fabro
Um dos resultados do meu livro foi precisamente estabelecer a grande influência que os autores europeus, especialmente jesuítas, tiveram em Bergoglio. Assim, desaparece a lenda do papa latino-americano, que não estaria em condições de se medir com o pensamento europeu. O principal autor é, sem dúvida, Gaston Fessard, jesuíta, um dos mais geniais intelectuais franceses do século XX. Também Henri de Lubac, com a maneira de conceber a relação entre Igreja e sociedade que ele propõe em Catholicisme. Les aspects sociaux du dogme [Catolicismo. Os aspectos sociais do dogma]. Fessard e Lubac são protagonistas da Escola de Lyon. Ao segui-los, Bergoglio é, de certo modo, um discípulo dessa escola. Tanto Fessard quanto Lubac aderem a uma concepção dialética, herdada de Adam Möhler, o grande fundador da Escola de Tübingen, para quem a Igreja é coincidentia oppositorum, unidade sobrenatural daquilo que no plano do mundo é irreconciliável. É a mesma concepção que Bergoglio tem.
Além dos dois autores jesuítas que acabamos de citar, há outro, também francês, que influenciou Bergoglio: Michel de Certeau. Ele também foi protagonista do cenário intelectual, especialmente nos anos 70. Mas o De Certeau que interessa a Bergoglio é o dos anos 60, o estudioso da mística moderna, de Surin a Fabro. O prefácio que ele escreveu para o Memorial de Pedro Fabro, o grande amigo de Santo Inácio, é um texto-chave na formação de Bergoglio. Seu ideal jesuíta da vida cristã, do contemplativo em ação, tem o selo de Pedro Fabro.
Há outros autores que sejam decisivos na sua formação, além dos franceses?
Methol Ferré e Bergoglio encontram-se, compartilham a mesma perspectiva sobre a Igreja e a sociedade, têm os mesmos autores de referência
A partir de 1986, o ítalo-alemão Romano Guardini adquire um papel fundamental. Nesse ano, Bergoglio viaja para Frankfurt, Alemanha, para fazer uma tese de doutorado sobre Guardini. Mas o tema que ele escolhe não são as obras teológicas ou de caráter religioso, mas a única obra inteiramente filosófica de Guardini: A Oposição Polar. Ensaio de uma filosofia do concreto vivo. É uma decisão curiosa. Por que ocupar-se do Guardini filósofo e não do teólogo?
A resposta é compreensível à luz do meu estudo. Para Bergoglio, a antropologia “polar” de Guardini é uma confirmação de sua visão dialética e antinômica, apreendida através de Fessard e De Lubac. A autoridade de Guardini confere um valor especial ao modelo de pensamento que Bergoglio aplica aos campos eclesial e político-social. Ao mesmo tempo, o modelo guardiniano amplia o bergogliano e permite aprofundamentos inéditos. A partir dos anos 90, Guardini torna-se um autor de referência. Encontramo-lo citado várias vezes na Evangelii Gaudium e na Laudato Si’.
Outro autor chave é o grande teólogo suíço-alemão Hans Urs von Balthasar. Essa foi uma descoberta. A partir dos anos 90, quando já era bispo e depois como cardeal, Bergoglio aproximou-se da grande estética teológica de Von Balthasar, compartilhando seu enfoque, o primado que concede à beleza em função da comunicação do bem e da verdade. A unidade dos transcendentais do ser torna-se um ponto fundamental do pensamento teológico e filosófico de Bergoglio. De Balthasar, Bergoglio toma também as categorias para opor-se ao gnosticismo, ao esvaziamento da carne de Cristo nos diversos “idealismos” espiritualistas. O ensaio sobre Irineu, no livro Glória, impressionou muito Bergoglio.
E quero lembrar uma última influência: a obra de dom Luigi Giussani. Bergoglio era leitor – e em alguns casos, os apresentou em Buenos Aires – dos livros de Giussani traduzidos para o espanhol. Do seu ponto de vista, as principais categorias do método educativo de Giussani – o encontro, o estupor, a experiência, etc. – estão associadas à entrega gloriosa da “forma” (Gestalt), como ensina Von Balthasar. Tudo isso orientado para uma atitude missionária, evangelizadora, que situa o cristão no horizonte da Igreja dos primeiros séculos: como há 2000 anos.
Que peso têm, em seu pensamento, as fontes latino-americanas? Methol Ferré, historiador e filósofo nascido no Uruguai, ocupa um lugar importante na sua obra…
Entre as fontes latino-americanas, sem dúvida, colocaria na primeira fila Lucio Gera e sua Teologia do Povo, a reformulação da Teologia da Libertação feita pela Escola do Rio da Prata, com sua crítica ao marxismo e sua opção preferencial pelos pobres. É um aspecto conhecido e estudado do pensamento de Bergoglio. A Teologia do Povo tem o mérito de redescobrir o valor da religiosidade popular latino-americana, simbolizada pelo culto a Nossa Senhora de Guadalupe, que supera os preconceitos da cultura iluminista.
Além de Gera e dos teólogos próximos a ele, no entanto, há outros autores que são decisivos para a reflexão de Bergoglio. Entre eles, Miguel Ángel Fiorito, seu professor de filosofia. Fiorito é quem o introduz em uma redescoberta dos Exercícios Espirituais de Santo Inácio através da leitura do estudo inaciano de Gaston Fessard. Depois, o encontro com Amelia Podetti, a “filósofa” argentina mais ilustre dos anos 70. Estudiosa de Hegel, Podetti desenvolve uma reflexão sobre a inculturação da fé, sobre a relação entre centro e periferia, sobre o papel da América Latina no novo contexto mundial, o que interessou muito a Bergoglio.
Finalmente, há o autor por excelência: Alberto Methol Ferré, com quem compartilhou a experiência do CELAM entre 1979 e 1992 e é o intelectual mais lúcido da América Latina. Bergoglio e Methol estão em perfeita sintonia. Meu trabalho analisa o pensamento de Methol Ferré, seu tomismo dialético, e isso juntamente com a entrevista que você fez com Methol no livro O Papa e o Filósofo, é uma novidade no panorama cultural italiano. Methol Ferré e Bergoglio encontram-se, compartilham a mesma perspectiva sobre a Igreja e a sociedade, têm os mesmos autores de referência. Fundamentalmente um: ambos dependem da visão polar, dialética, de Gastón Fessard. Essa fonte comum também explica sua proximidade ideal, filosófica, sua sintonia na maneira de enfrentar os desafios da Igreja latino-americana desde a década de 1970. Bergoglio aprecia muitíssimo o “amigo” Methol, lê seus artigos em Víspera e Nexo, e está impressionado com sua geopolítica eclesial, compartilha seu ideal de “Pátria Grande”.
Há aquisições finais do seu estudo, de síntese, que reafirmam o que foi escrito até agora sobre o Papa Bergoglio?
Bergoglio é um discípulo da Escola de Lyon cujos protagonistas foram Gaston Fessard e Henri de Lubac
As aquisições são muitas. Em primeiro lugar, como já dissemos, esclarece-se a gênese e o fio condutor do pensamento de Jorge MarioBergoglio. E é a primeira vez que isso acontece. São desmentidas as opiniões daqueles que, por preconceito ou por falta de documentação, continuam repetindo que Francisco não tem qualificações para exercer o ministério petrino.
Bergoglio é portador de um pensamento original, dependente de uma tradição do pensamento “católico” dos séculos XIX e XX, a de Adam Möhler, Erich Przywara,Romano Guardini, Gaston Fessard e Henri de Lubac. Alguns desses autores são jesuítas, outros não. É uma tradição ilustre que precisamente o magistério de Franciscohoje permite redescobrir e valorizar. Uma tradição que desmente aqueles que – penso sobretudo nas críticas contra a Amoris Laetitia – pretendem atribuir ao Papa uma teologia praxística, relativista e permissiva.
Na concepção “polar” de Bergoglio, a Verdade e a Misericórdia não podem ser separadas, assim como o belo-bom-verdadeiro, à luz da unidade dos transcendentais. Aqueles que criticam Francisco por suposto subjetivismo e modernismo mostram que não conhecem seu pensamento. Assim como também não conhecem o seu pensamento aqueles que o acusam de reduzir a fé à questão social e esquecer o primado do kerygma. Pelo contrário, Francisco – como afirma explicitamente na Evangelii Gaudium – quer recuperar o primado do kerygma sobre o desvio ético da Igreja nas últimas décadas e, ao mesmo tempo, quer um forte compromisso dos católicos no social.
Ele não faz nenhuma redução: são dois polos de uma tensão que caracteriza o católico. Em relação ao compromisso político, a transcendência, o “primeirear” da fé e da graça sobre qualquer declínio histórico, é essencial. O Papa tem uma concepção “mística” que afirma a abertura do pensamento em relação a qualquer fechamento ideológico e sistemático, e isso em função da ação do “Deus sempre maior”.
Como ficam as críticas feitas a Bergoglio criticando-o de ser “populista-peronista”?
O Papa Francisco tem uma concepção “mística” que afirma a abertura do pensamento em relação a qualquer fechamento ideológico e sistemático, e isso em função da ação do “Deus sempre maior”
Aqueles que as fazem, evidentemente, não o conhecem bem, ou as fazem sabendo que estão errados. O Papa é um crítico da absolutização da economia capitalista desvinculada de qualquer lei ética, assim como foi imposta na era da globalização. Mas ele não é “populista“. Sua simpatia pelo peronismo, devida à atenção dada à questão social, não deve ser confundida com as ideias salvíficas próprias de uma política ideológica.
É interessante, desse ponto de vista, a valorização que Bergoglio faz na década de 1990 de A Cidade de Deus de Santo Agostinho. Ele propõe Agostinho como um modelo atual para criticar os modelos teológico-políticos que comprometem a Igreja com o poder, seja da direita, seja da esquerda. Sobre este assunto, a posição de Bergoglio está totalmente em sintonia com a leitura de Agostinho que Ratzinger faz. O livro esclarece muitos pontos da reflexão de Bergoglio que até agora tinham ficado na sombra do público europeu, constituindo-se em fonte de controvérsias. Nisso reside, espero, a utilidade do mesmo.
Massimo Borghesi. Jorge Mario Bergoglio. Una biografia de intellettuale. Dialettica e mistica. Introduzione di Guzmán Carriquiry Lecour. Milano: Jaca Book, 2017.
A entrevista é de Alver Metalli, publicada por Vatican Insider.