A escritora Mary Eberstadt é conhecida nos Estados Unidos por suas análises conservadoras sobre a sociedade, a cultura e a filosofia norte-americanas. Em 2013, ela lançou o livro How the West Really Lost God (“Como o Ocidente realmente perdeu Deus”, infelizmente sem tradução para o português). Para a autora, se a destruição da família é geralmente considerada um efeito da perda de identidade religiosa, o contrário também é verdadeiro. A teoria de Eberstadt vê a decadência familiar como causa da secularização que o Ocidente vem experimentando nas últimas décadas.
Eis a íntegra de uma entrevista que ela concedeu a Gerald J. Russello, editor do site The University Bookman, sob o título Family and Faith: A Two-Way Street (“Família e fé: uma via de mão dupla”):
Obrigado por se juntar a nós. Conte-nos sobre a tese do seu novo livro.
How the West Really Lost God começa com uma revisão dos argumentos convencionais para a secularização do Ocidente e observa que esses argumentos não explicam adequadamente o declínio do Cristianismo em certas partes do mundo ocidental. Se isso estiver correto — se, com todo o respeito aos novos ateístas e outros pensadores seculares, o progresso material, a educação e o racionalismo não causaram por si só o secularismo—, então, o que aconteceu?
Meu livro argumenta que, no grande quebra-cabeça do processo de secularização, tem faltado uma peça chave: a família, e os modos como as mudanças na família ocidental, por sua vez, afetaram o Cristianismo ocidental. Por razões que são apresentadas em vários capítulos, eu acredito que essas duas instituições são melhor entendidas como uma dupla hélice — que uma é tão forte quanto a outra em um dado momento da história, e que uma depende da outra para se reproduzir.
Esse é um novo modo de entender o que anda acontecendo, uma firme ruptura com o script secular pós-iluminista sobre o que Nietzsche e outros chamaram de “a morte de Deus”. Sob a influência desse script, muitas pessoas parecem ter decidido que o declínio da religião é simplesmente inevitável. Mas não é isso o que mostram os registros.
O seu livro ajuda a analisar os vários efeitos que a modernidade teve em diferentes partes do mundo. Você nota que a modernidade e a perda da necessidade da religião nem sempre andam juntas. Na sua visão, então, o que causou a secularização da Europa?
A Europa ocidental é mais secular que os Estados Unidos, e a Escandinávia, por sua vez, é o território mais secular de todos. Consideremos, então, a Escandinávia como uma placa de Petri para a teoria do livro. Qual região iniciou a família ocidental sem casamento e o seu aliado mais próximo, o Estado social (cujo papel indiscutível na secularização é também parte dessa cultura)? A Escandinávia. Qual é indiscutivelmente o lugar mais atomizado no mundo ocidental hoje, a medir pelo, vamos dizer, número de pessoas que sequer vive dentro de uma família? Novamente, a Escandinávia. Hoje, quase metade das casas suecas é composta de uma só pessoa, por exemplo.
Eu acredito que essas mudanças não estão acontecendo de modo aleatório. A Escandinávia é um exemplo excelente para provar a tese do meu livro: o declínio religioso e o declínio familiar — medido por índices como fertilidade, casamento, divórcio e coabitação — andam lado a lado. Eles estão relacionados de modo causal.
Você fala do “Fator Família” e do “efeito que a participação na família per se parece ter na fé e na prática religiosas”. Você pode explicar essa relação?
A sociologia convencionalmente supõe que o declínio religioso leva a um declínio na família — que as pessoas primeiro perdem o seu Cristianismo, e então mudam os seus hábitos de formação familiar. Acredito que esse é um entendimento muito estreito, e que a relação causal entre as duas instituições é muito mais dinâmica.
Por exemplo, nós sabemos que, se as pessoas são casadas, elas tendem muito mais a ir à igreja. Também sabemos que, se são casadas e têm filhos, elas tendem mais ainda a fazê-lo. Até agora, sociólogos observando essa conexão assumiram o fato de ir à igreja como algo que as pessoas casadas simplesmente “fazem”. Eles não se perguntaram se a realidade de casar e ter uma família pode constituir uma força causal em si mesma — inclinando algumas pessoas a uma religiosidade maior.
O que o quadro geral mostra, eu acho, é que existe alguma coisa relativa à vida familiar — na verdade, mais de uma coisa — que leva as pessoas à igreja em primeiro lugar: coisas como o desejo de situar os próprios filhos em uma comunidade moral, ou o fato de que o nascimento é visto por muitas pessoas como um evento cósmico e sagrado, ou o fato de que o Cristianismo ratifica como nenhum outro credo secular o tipo de sacrifício envolvido na vida familiar, bem como outros fatores que eu abordo no livro. Novamente, família e fé parecem operar em uma via conceitual de mão dupla, e não em uma de direção única.
Quais dados você encontrou relacionando o declínio da família com crises econômicas ou sociológicas?
Há inúmeros dados para conectar o fortalecimento da família a benefícios econômicos — e também, por outro lado, para conectar declínio familiar a crise econômica.
No momento, toda uma biblioteca poderia ser construída para abrigar a ciência social sobre o rompimento da família incluindo, por exemplo, o fato de que lares destruídos aumentam a probabilidade estatística de que crianças tenham problemas educacionais, comportamentais e outros que possam impedir o seu sucesso na vida; ou outras verdades inconvenientes, as quais, apesar disso, estão empírica e firmemente estabelecidas. O último grande cientista social James Q. Wilson brincava que existem tantos dados atestando os benefícios da família que até alguns sociólogos estão começando a acreditar nela.
No livro, eu também tento olhar para tipos de efeitos colaterais menos comuns, mas igualmente fáceis de perceber — especialmente aqueles que ajudam o declínio familiar a impulsionar o declínio religioso.
Mas as estruturas da família não são meramente arbitrárias? Por que uma família “natural” é importante?
Ao falar de família “natural”, eu me refiro simplesmente à configuração de família que outros modelos podem até imitar, mas não poderão jamais replicar, ou seja, o modelo fundamental baseado nos irredutíveis laços biológicos de mãe, pai, filhos etc. O Cristianismo tem dependido historicamente dessa forma de família, que é a que aparece nos bancos das igrejas cristãs tradicionais.
O destino da família natural é também importante para o destino do Cristianismo de outra forma: porque a história cristã em si mesma está repleta de personagens, metáforas e significado familiares. No fim das contas, trata-se de uma religião que começa com o nascimento de uma criança, que tem uma Sagrada Família, que entende o próprio conceito de Deus como o de um Pai amoroso e benevolente.
O que acontece, então, se vivemos em um mundo — como nós do Ocidente vivemos — em que mais pessoas experimentam cada vez menos essas mesmas coisas? O ponto é que a desintegração da família introduz uma nova complexidade na transmissão de certas características da mensagem cristã. Como você explica Deus Pai a alguém que cresceu sem uma figura masculina e paterna dentro de casa? Ou como falar o que há de tão sagrado sobre um bebê a pessoas que — em um tempo de taxas decrescentes de natalidade e outras mudanças familiares — talvez nunca tenham ou cuidem de uma criança?
Esses problemas não são insuperáveis. Todavia, são problemas que não existiam antes. Novamente, mudança familiar e mudança religiosa andam lado a lado.
Por que deveríamos nos preocupar com o declínio da fé cristã no Ocidente?
É um ponto de vista do livro o de que todos têm uma posição sobre esse assunto. Crentes ou seculares, todo mundo tem um palpite a dar sobre o papel do Cristianismo no espaço público moderno.
Há um capítulo inteiro dedicado aos dados que demonstram apenas essa proposição. É difícil condensar isso em uma frase sem parecer reducionista, mas, para se ter uma ideia, pessoas religiosas são, de maneira geral, mais felizes, mais saudáveis e significativamente mais caridosas com o seu tempo e o seu dinheiro do que pessoas seculares. É claro que todos podemos pensar em exceções, mas essas generalizações são corroboradas por ciência social absolutamente isenta.
Esse é um exemplo de como, no seu melhor, aqueles que creem “dão um retorno” para o resto da sociedade. Há outros exemplo ainda. O Cristianismo tradicional tenta encorajar famílias fortes, por exemplo, e à medida em que isso funciona, essa prioridade institucional também é de evidente benefício social. É possível argumentar que o grande e crescente Estado social não existiria sem a fratura do lar ocidental, porque muito do que o Estado faz é servir de substituto para o pai ou provedor do lar — fazer os tipos de coisas que costumavam ser feitas por famílias autossuficientes.
Na sua análise, que efeito tiveram os novos imigrantes islâmicos na Europa?
O livro limita a sua análise ao Cristianismo, o que já é mais do que o suficiente para um volume. Por isso, pode ser que a tese do livro se aplique a outras confissões que não a cristã.
Ao longo de todo o globo, por exemplo, alta fertilidade é associada com alta religiosidade. Quanto mais religiosas são as pessoas, mais elas tendem a ter filhos, e pessoas profundamente religiosas tendem ainda mais a ter famílias numerosas que outras pessoas. É a dupla hélice novamente em ação, e os muçulmanos da Europa exemplificam isso também.
De qualquer modo, é claro que o que torna a confusão das mesquitas na Europa tão óbvia é o silêncio de muitas igrejas, porque elas estão vazias.
Você acha que algo pode ser feito para revigorar alguma das duas hélices que você descreve — a fé e a família?
Sempre há algo a ser feito. Parte da resposta se encontra nas bases. Se as pessoas entenderem que “a importância da família para a fé” não é apenas retórica, mas, ao contrário, se trata de uma conexão orgânica profunda à qual é preciso prestar atenção, a revigoração acontecerá em cada igreja e congregação por vez.
Ter uma família é um trabalho pesado em qualquer tempo ou época, de modo que quem se preocupa com a família enquanto instituição deve pensar em todas as coisas que facilitam a vida das pessoas — coisas pequenas, mas significativas. As igrejas naturalmente fazem algumas dessas coisas, mas, sem dúvida, elas poderiam fazê-las melhor e com mais vigor. É tentador ter o Estado social tomando as rédeas do que instituições menores, como igrejas, poderiam estar fazendo melhor e com mais sensibilidade e eficiência. Todavia, é preciso resistir a essa tentação se as igrejas quiserem construir comunidades mais vibrantes. O que elas precisam é competir com o Estado oferecendo serviços melhores à comunidade.
Além das bases, a maior questão no horizonte deve ser o que vai acontecer ao moderno Estado social que ao mesmo tempo contribuiu para o declínio da família e emergiu como um substituto custoso para a família. Será o Estado babá, tal como o conhecemos — tomando conta de seus cidadãos do berço ao túmulo —, sustentável? Tendências demográficas e econômicas, especialmente em partes da Europa ocidental, sugerem que a resposta a longo prazo talvez seja negativa. E se fosse para o atual Estado social imperar ou mesmo implodir, é difícil ver como qualquer instituição a não ser a família poderia emergir no vácuo resultante.
No livro, eu ofereço dois capítulos — um para o caso do otimismo e outro para o do pessimismo —, a fim de que os leitores possam decidir por si próprios. De qualquer modo, o renascimento de ambas as instituições já aconteceu antes na história, como o livro frequentemente menciona. Não é difícil imaginar essa mesma renascença acontecendo de novo.
Fonte: The University Bookman | Tradução: Equipe CNP