Em síntese: Richard Dawkins critica a religião considerando caricaturas da mesma ou crendices, superstições, magia… quer extinguir as religiões e acabar com a fé no mundo inteiro. Um colega, porém, Alstaír Mc Grat, ex-ateu que se tornou religioso, observa que Dawkins se refere a falsas imagens da Religião, não podendo portanto sustentar-se a posição de Dawkins. O ato de fé é o ato mais nobre que o homem possaefetuar.
A revista SUPERINTERESSANTE de agosto 2007 publicou uma reportagem sobre o zoólogo norte-americano Richard Dawkins, o aiatolá dos ateus, que afirmava: “Meu grande sonho é a destruição completa das Religiões” e “A pior coisa das religiões é a ideia de fé”. Essas acusações se baseiam em caricaturas da Religião e crendices supersticiosas, que vêm expostas logo no início da reportagem e que aqui serão em parte transcritas:
“João reza todos os dias diante de uma Chaleira de porcelana que está no céu em órbita entre a Terra e Marte. Ele só namora moças que também acreditam na Chaleira e nunca usa camisas verdes, pois isto é uma grande ofensa ao Todo-Poderoso.
Ricardo, vizinho de João, acredita que o mundo foi criado por um gigantesco monstro voador feito espaguete. Todo mês se encontra com um grupo de espagueteiros para cantar músicas sobre como o monstro é bacana. Um belo dia, depois do café da manhã (sem pão, pois sua religião proíbe comer pão e comidas feitas com farinha), Renato veste uma camisa verde e sai para trabalhar. Ao encontrar-se com ele, João fica muito chateado com sua roupa… Ricardo promete que vai usar camisa verde menos vezes” (p. 86).
Ora inegavelmente qualquer pessoa autenticamente religiosa repudia tal caricatura da Religião, mas nem por isto cai no ateísmo.
Vejamos, pois, o que é a fé e o que é a Religião.
1. A Fé: que é?
Responderemos por três etapas.
1) A Fé é um ato da inteligência; portanto não é um sentimento vago, mas é expressão da mais nobre faculdade que o homem tem: o intelecto,que tenta aplicar-se ao objeto mais nobre que possa ser concebido, ou seja, a Deus.
2) Esse ato do intelecto é movido pela vontade, pois o objeto da fé transcende os limites do intelecto humano (a verdade é mais ampla do que o alcance do nosso intelecto). Sendo assim, o objeto da fé não obriga a um assentimento, não é tão evidente que force a adesão de quem o contempla. A vontade, portanto, deve mover o intelecto para que diga Sim ou Não.
3) A vontade, porém, só move o intelecto depois do exame das credenciais sobre as quais se apoia cada proposição de fé. Cabe então ao intelecto humano averiguar as razões em virtude das quais o indivíduo pode e deve crer (): estude o Evangelho, a história, a paleografia… e chegue eventualmente à conclusão: “Não é absurdo crer; não é infantilismo ter fé”. Há razões suficientemente fortes para que o homem diga Sim ao objeto de fé, sem trair sua dignidade de homem adulto.
4) Portanto o homem crê inteligentemente. E a própria razão sadiamente crítica que aponta o caminho da fé. Assim evitam-se as superstições e crendices que não resistem ao crivo da razão.
Esse assentimento dado ao Transcendental corresponde às mais íntimas aspirações do ser humano, que sabe ser ele pequeno demais para bastar a si. Todo ser humano é uma demanda ansiosa de Vida plena, de Amor sem traição de Verdade sem erro… E crê inteligente e razoavelmente que tais objetivos não serão frustrados, pois ele estudou a temática com a sua razão. Extirpar a fé de um homem ou de uma população é retirar-lhe um dos mais fortes esteios de sua vida, é condená-lo a só conhecer o que é passageiro e ilusório, como se verifica no caso de muitos ateus ().
A vida presente, com suas lacunas e frustrações, pede uma outra vida, em que os valores conculcados no presente serão devidamente reabilitados.
Se a fé tem por objeto algo não evidente por si mesmo, ela é um ato livre. Pode ser traída e rejeitada, como acontece nos casos em que as paixões predominam sobre o intelecto e a vontade. Daí haver falsas expressões da fé, que causam escândalo aos não crentes, mas que não são autênticos gestos de fé.
Aliás o senso de justiça obriga a lembrar os grandes benefícios que a Religião proporcionou à humanidade.
2. Religião: valores
1. É fato evidente que a Religião suscitou elevado número de homens e mulheres que se doaram aos irmãos e irmãs mais necessitados, fundando escolas, hospitais, asilos e outras obras de caridade. Durante séculos estas também ficavam a cargo exclusivo dos religiosos.
Foi a Religião que evangelizou os povos bárbaros e os habilitou a construírem o cenário europeu, que está na vanguarda do progresso humano.
Nos primórdios da civilização a religião desenvolveu importante papel, estimulando o homem a descobrir os valores da natureza que redundariam em tipo de vida mais confortável.
3. Religião – elemento propulsor
Longe de se prender à ignorância e à covardia, a Religião tem sido sempre poderoso estímulo da cultura: verifica-se que as grandes conquistas da civilização no decorrer dos séculos foram empreendidas primeiramente por interesses religiosos. Para ilustrar isto, os geógrafos apontam longa série de instituições culturais que a Religião inspirou ou, ao menos, fomentou pujantemente:
a) A casa. O domicílio do homem difere do ninho ou do antro do animal irracional não só por sua complexidade, mas principalmente por ser em seus primórdios um santuário religioso. Com efeito, o tipo característico da casa entre os romanos, por exemplo, se deve ao culto do fogo sagrado, fogo junto ao qual residiam os deuses Lares e Penates; para defender dos profanos o fogo santo, os homens construíram em torno dele um enquadramento, no qual aos poucos conceberam a ideia de estabelecer sua própria residência.
Algo de semelhante se deu entre os gregos, os quais diziam que o fogo havia ensinado os homens a construir seu domicílio. O fogo parece ter entrado nas casas em geral primeiramente a título religioso; só posteriormente foi dentro de casa utilizado para fins domésticos (aquecer, cozinhar…); ainda há tribos antigas que deixam a cozinha com o seu fogo fora de casa, só introduzindo no domicílio o fogo de caráter religioso. – Numerosos são os vestígios de crenças religiosas na arquitetura e na localização das casas, na disposição de portas, janelas e poços, entre os diversos povos.
b) As cidades. Também a formação e a configuração das cidades foram fortemente inspiradas por motivos religiosos. Era em torno de um templo ou de um recinto de culto que se ia aglomerando a população de uma região, dando assim origem a uma aldeia ou cidade; Enéias, por exemplo, fundou a cidade de Lavinium, levando para o santuário do mesmo nome os deuses de Tróia; na Idade Média era em torno de uma igreja situada no alto de uma colina, ou em torno de um mosteiro, que frequentemente se fundavam as cidades (tenham-se em vista os nomes compostos com moutier, mosteiro: Romainmoutier, Moyenmoutier, Noirmoutier…; em alemão Münster…).
Observe-se também que desde cedo se foram construindo cidades entre os egípcios, os mesopotâmios, os cretenses, porque a religião lhes favorecia; julgavam que os deuses queriam cidades; as grandes cidades gregas nasceram em período de efervescência religiosa. Ao contrário, os germanos, os celtas, os albaneses só tardiamente conheceram cidades, porque a sua sabedoria religiosa não as fomentava; foram não raro estrangeiros que entre eles fundaram as cidades.
c) A agricultura. Foi também muito estimulada por concepções religiosas, que atribuíam a certas plantas um valor sagrado ou uma função qualquer no culto. Tal foi o caso da figueira, que na índia traz o nome defícus religiosa; os gregos diziam que o figo era símbolo de iniciação a melhor vida. A oliveira gozou de semelhante estima. – O ópio, ao contrário, sendo proibido pelo budismo e o islamismo, é cultivado com estranha irregularidade no Oriente.
d) Os animais. Também não poucos animais têm recebido veneração religiosa. Em vários casos a passagem do animal selvagem para o estado de animal doméstico se fez mediante o estado de animal sagrado. O elefante, por exemplo, antes de ser animal doméstico, era animal sagrado na índia. No antigo Egito, os gatos sagrados eram numerosíssimos (descobriram-se milhares de múmias desse felino); julga-se com probabilidade que foram domesticados por constituírem objeto de culto religioso. Outros animais entraram no convívio do homem, a fim de honrarem a Divindade pela sua beleza; assim a íbis, no Egito; o pavão, na índia; o gamo, no Japão.
e) A indústria. Não menos profunda é a influência benéfica da Religião no desenvolvimento da indústria. A fabricação de laticínios, por exemplo, está em grande parte a serviço do culto no Oriente; nos templos do Tibete centenas de lamparinas ardem dia e noite, alimentadas por manteiga; os “lamas” têm o rosto, as pernas e as mãos untados com manteiga. A fabricação do papel e do livro têm dependido muito das necessidades do culto e da piedade; o mesmo se dá com os têxteis e a metalurgia.
f) O comércio. Está claro que as aglomerações vultosas de fiéis motivadas pela religião acarretam intensificação benéfica do comércio; as primeiras moedas eram objetos estimados por seu caráter ritual ou seu valor religioso. A contabilidade dos bancos e escritórios tem suas origens nos templos da Mesopotâmia, onde os sacerdotes, movidos por respeito sagrado, faziam o inventário de tudo que dizia respeito ao culto e ao sustento do templo.
g) Os transportes, as vias e as pontes devem grande parte do seu incremento ao fervor religioso de peregrinos e missionários. Não raro a afluência a determinado santuário provocou a abertura de estradas, assim como a multiplicação e o aperfeiçoamento de veículos. – Em particular, as pontes têm sido obras de sacerdotes ou de pessoas dedicadas a Deus. Com efeito, os romanos pagãos, por exemplo, julgando que os rios tinham algo de agrado, reservavam a construção de pontes a um grupo especial de sacerdotes. Entre os cristãos da Idade Média, era a caridade que levava os fiéis a formar confrarias construtoras de pontes: havia os “Irmãos Pontífices”, aos quais se devem as pontes de Avinhão e do Espírito Santo, sobre o Ródano (França).
h) Por fim, note-se outrossim que no surto das artes está em geral a inspiração religiosa; as primeiras peças literárias das antigas e modernas civilizações são documentos religiosos; costumam estar redigidos em poesia, que é a forma literária mais correspondente ao entusiasmo sagrado (tenham-se em vista, por exemplo, as obras de Homero e dos “teólogos” gregos). A pintura e a escultura não são menos tributárias à Religião.
Em suma, registra-se o seguinte: sempre que nos é dado observar as origens ou as fases iniciais de determinada cultura, verificamos que as suas diversas manifestações estão todas indistintamente fundidas com a Religião; é no seio materno da Religião que elas nascem e por muito tempo são nutridas.
Donde se vê que considerar a Religião como algo de pré-lógico ou como produto da covardia do homem significa, de certo modo, lançar uma nota de desprezo sobre a própria cultura humana, que nasceu no seio da Religião.
Vêm a propósito aqui as observações de famoso geógrafo contemporâneo:
“A maioria dos homens atesta sobre a Terra a existência do sobrenatural; a espécie humana, em graus diversos, mas de maneira geral, é religiosa; esta, aliás, vem a ser uma de suas características; o “homo faber etsapiens” é também primordialmente um homo religiosus. Por obra dele, a terra está impregnada de religiosidade. A pujante tarefa cultural dos homens não foi efetuada somente em vista da instalação da espécie humana sobre o globo, mas parte muitas vezes grandiosa desses esforços foi empreendida mais ou menos diretamente a fim de proclamar ou exaltar a existência de seres sobrenaturais ou sagrados…
A religião nos aparece como um dos grandes fatores que transformam a face da Terra e, em qualquer caso, como o motivo de atividades caracteristicamente humanas… À semelhança do homem, o animal (irracional) lutou contra os elementos da natureza; mas o que somente o homem fez, foi dar vulto à ideia da Divindade sobre a face do globo. A Geografia religiosa vem a ser a Geografia mais especificamente humana…” (P. Deffontaines, Géographie et Religions. Paris 1948, 8.12).
4. Conclusão
A religiosidade é um elemento integrante da pessoa humana. O homem bem pode ser considerado um peregrino do Absoluto, um viandante rumo ao Eterno e Infinito. Até os materialistas marxistas procuram um novo estado de coisas e a plena satisfação de seus anseios através da mística do martelo e da foice. Os atritos que a religião causou entre os homens se devem, em grande parte, à valorização dos bens espirituais, que os antigos e medievais julgavam ser superiores aos bens materiais. A religião inspirou a entrega de tudo, até da própria vida, para não renegar o Valor Supremo que é Deus. Quando se avalia o passado, não se pode deixar de levar em conta esse traço próprio da mentalidade de nossos ancestrais.
Acontece, porém, que esse elemento integrante da pessoa humana – o senso religioso – não pode ser cego ou desligado da razão. É esta que distingue entre si fé e crendice. É com a inteligência que o homem crê, e não com os olhos da mente fechados pela cegueira do sentimentalismo ou das emoções.
Compete aos cristãos dar testemunho da autêntica religião, para que, mediante este testemunho claro e firme, o irmão que busca o Absoluto, embora não tenha fé, se entusiasme pela beleza de uma vida santa,… heroicamente santa.
Dom Estêvão Bettencourt (OSB)