O que é o bem? Existe um critério objetivo de bondade que nos permita discernir, sem medo de errar, entre o bem e o mal?

É difícil que haja uma pergunta mais importante do que essa: “O que é o Bem?; Que coisas são boas?” No mais profundo de si mesmo, o Homem abriga o desejo de ser bom, de fazer coisas boas: quando escolhe o mal é porque ficou ofuscado pela pequena parte de bem com que o mal se reveste. Deus – Bem infinito, que faz o bem e o põe em toda criatura – é Quem dá a todas as suas obras essa capacidade de atuar na direção do bem e, assim, incrementá-lo.
Todos temos uma espécie de instinto para descobrir o bem. Sabemos que “o bem é bom” e que “o mal é mau”. Na prática, porém, muitas vezes aparece o problema: “isto é bom?”, “é bom fazer isto?”. A resposta nem sempre é imediata ou certa: às vezes pode exigir um longo e árduo estudo. Mas sendo tão importante acertar quando está em jogo a nossa própria bondade, o nosso bem, compreendemos que esse estudo deve ser rigoroso, científico, de modo que a conclusão apoie-se em argumentos sólidos e irrefutáveis.

Assim nasce a ciência que chamamos de Ética (vem se ethos, que em grego quer dizer costume, modo habitual de agir). A Ética investiga aquilo que é bom fazer, para que – fazendo-o – alcancemos a maior perfeição humana possível e, portanto, satisfaçamos os nossos mais profundos desejos, ou seja: alcancemos a felicidade.

Quando se diz que algo “é ético” ou “não é ético”, o que se está dizendo é que é ou não bom. Contudo, embora todos concordemos em afirmar que a nossa conduta deve ser “ética”, nem sempre concordamos sobre se essa ou aquela coisa em concreto é ou não é “ética”. O que para alguns parece ser “ético”, para outros é uma monstruosidade. Assim, por exemplo, alguns afirmam que é “ético” provocar o aborto quando a gravidez resultou de um estupro, enquanto outros dizemos que fazer isso é cometer um dos piores crimes – mais grave até do que o terrorismo –, negando ao não-nascido inocente o direito mais elementar de qualquer pessoa: o direito à vida.

Esse exemplo nos permite entender a enorme importância que tem estarmos esclarecidos sobre o que é e sobre o que não é “ético”: sobre quais coisas são as realmente “boas”. Não é uma questão trivial que possamos deixar para que outros resolvam. Trata-se de uma questão de vida ou morte, e que deve ser encarada com toda a seriedade e rigor.

É possível chegar a um conhecimento certo sobre “o que é bom” – pelo menos em seus aspectos fundamentais – ou estamos condenados a uma eterna dúvida, a meras opiniões sem fundamento racional? Existe um critério objetivo de bondade que nos permita discernir, sem medo de errar, entre o bem e o mal? O bom senso sempre afirmou que sim, mas é conveniente que compreendamos porque, e também porque alguns enxergam as coisas de modo diferente.

É claro que o bem – o que é bom – é assim porque contém alguma perfeição que o torna apetecível, desejável. Aristóteles dizia que “o bem é algo que todos desejam”. Mas por que todos desejamos o bem? Porque vemos nele algo que nos beneficia, algo que “nos faz bem”, que nos aperfeiçoa, que nos melhora, que satisfaz as nossas necessidades, que nos faz mais felizes. Cabe dizer que o bem é uma perfeição que me aperfeiçoa: uma perfeição aperfeiçoadora (essas considerações – tão óbvias que parecem um simples lugar-comum – não são vãs).

O BEM É RELATIVO

Deve-se notar que nem tudo aquilo que aperfeiçoa um determinado sujeito aperfeiçoa igualmente todos os outros. O adubo animal serve como nutriente para as plantas, mas não para os homens. A alfafa é boa, saborosa e sadia: mas para as vacas, não para nós. Portanto é claro que o bem é relativo: é relativo a um sujeito ou a um determinado grupo de sujeitos, mais ou menos numeroso.

Essa “relatividade” do bem levou muitos a pensar que o bem não é algo “objetivo”, isto é: que o bem não está aí fixo, independente do meu pensamento. Cada um poderia considerar como sendo bom “aquilo que lhe pareça”: cada qual seria livre para considerar boa uma coisa ou a coisa oposta, decidindo por conta própria sobre o bem e o mal. Cada um seria – afirma-se – um “criador de valores”, já que a bondade das coisas não estaria nelas mesmas, mas na minha subjetividade, no meu pensamento, nos meus desejos ou opiniões. Esse é um grave erro no qual muitos incorrem, mas esse erro não é novo: é tão velho quanto a Humanidade. Adão e Eva não quiseram reconhecer que o bem estava onde Deus o tinha posto, pretendendo encontrá-lo onde eles, com sua má vontade, queriam que estivesse.

O BEM É OBJETIVO

Embora o bem seja “relativo” (algo é bom sempre “para alguém”), em termos estritos é a coisa menos subjetiva e opinável que existe. A bondade do ar que respiramos, da água que bebemos, do calor e da luz do sol que nos dá a vida, etc., etc… não é coisa que tenhamos inventado ou criado, não é uma bondade “opinável”: é algo que já está aí, independentemente das nossas avaliações.

De modo similar conhecemos os valores da justiça, da liberdade, da paz, da fraternidade: valores objetivos que não teria sentido negar. Mesmo se os negasse porque não me apetecem, ainda assim continuariam sendo valiosos para os outros. Essa minha inapetência seria um sintoma claro de alguma doença que tenho no corpo ou na alma.

É também importante notar – ao contrário do que foi muito difundido por certos filósofos – que se uma maçã me apetece, não é porque eu tenha conferido a ela o bom sabor. A maçã não se torna saborosa simplesmente por que sou eu quem a saboreio. Ainda que para outro ela seja insossa – talvez porque ele esteja doente –, a bondade da maçã não é produto da minha subjetividade: é a própria maçã que tem por si mesma a aptidão para causar um bom sabor e uma boa nutrição. Se assim não fosse, alguém poderia encontrar o mesmo sabor no fel ou até no lixo.

Está claro que existem bens e valores objetivos. Mas caberia perguntar se todos os bens são objetivos. A resposta é que de fato todos o são. Isso porque na prática as coisas e as ações humanas, queiramos ou não, sempre aperfeiçoam ou prejudicam: inclusive aquelas que – em teoria – poderiam razoavelmente ser consideradas indiferentes, como por exemplo passear.

Portanto, a “relatividade” do bem não significa que o bem é bom porque a minha vontade assim o deseja, mas que a minha vontade deseja o bem porque ele é bom. A bondade primeiramente está na coisa e só depois pode (ou não) estar no meu capricho, nas minhas opiniões ou nas minhas preferências. O que é bom para mim pode ser mau para outro; por exemplo, um remédio ou um trabalho determinado. Isso não depende do meu parecer. Do que depende então? Depende precisamente daquilo que eu sou, depende do meu ser, e isso já não é um produto da minha vontade, nem uma questão opinável. Embora os defeitos e qualidades que eu possuo agora tenham sido fruto dos meus atos voluntários anteriores, o que eu cheguei a ser, o que eu sou agora, é neste momento independente da minha vontade, e de modo igualmente independente da minha vontade haverá coisas que serão boas ou más para mim.

O bem depende, pois, do ser (do ser real, objetivo, que está aí) e do modo de ser. E se há algo que o Homem nunca poderá deixar de ser é precisamente isso: ser Homem. As características pessoais ou individualizantes próprias de cada um nunca esfumam ou anulam a natureza humana; são, pelo contrário, perfeições (ou defeitos) dessa natureza peculiar que todos compartilhamos: uma natureza que nos permite falar de “gênero humano” ou de “espécie humana”, e também de um bem objetivo comum a toda a Humanidade.

Como vimos, existem bens relativos a pessoas singulares. Mas é igualmente certo que existem bens relativos à natureza humana comum, e portanto relativos a todos e a cada um dos indivíduos da nossa espécie. É por isso que há leis ou normas morais objetivas, universais e permanentes, que afetam todos os homens, em qualquer tempo e lugar. O que prejudica a natureza forçosamente prejudicará a pessoa, porque a pessoa não é alheia à natureza: é o sujeito dessa natureza determinada.

A naturezas diversas correspondem bens diversos. O que é bom para o animal ou para o anjo pode não ser bom para o Homem. Por isso, para sabermos o que é bom para o Homem – para todos e cada um –, é indispensável conhecermos antes a resposta à grande pergunta: O que é o Homem? “Que sou eu, meu Deus? – exclamava Santo Agostinho – A minha essência, qual é?” (1)
A Ética (ciência sobre os bens do Homem) supõe a Antropologia Filosófica (que estuda o que é o Homem). Na História do Pensamento encontram-se éticas diferentes porque há diferentes conceitos sobre o Homem, e portanto diferentes conceitos sobre os bens.

O QUE É O HOMEM?

Para alguns, o Homem nada mais é do que um conjunto de corpúsculos, embora complexo e maravilhoso (Carl Sagan, o famoso cosmólogo norte-americano, por exemplo, dizia isso); muitos o consideram como pura química, ou como mero conjunto de instintos fatalmente determinados, ou como um simples número dentro da espécie zoológica. Todas essas são diferentes manifestações da visão materialista do Homem.

Pelo fato de negar – de modo dogmático, certamente – a realidade da alma espiritual e imortal, todo materialismo torna-se incapaz de conhecer o que o Homem na verdade é, e por esse mesmo motivo também não pode saber o que realmente é bom ou “ético”. Quando um materialista pensa no Homem como um simples animal evoluído – em quem não há nada que não seja redutível a elementos materiais –, não consegue pensar no bem sem reduzi-lo ao que é material e sensitivo; e além disso tenderá a conceder um valor absoluto aos assuntos econômicos. Escapa-lhe o que é mais valioso: o espírito, em que está a imprescindível raiz do entendimento e da vontade livres.

Por isso os termos “liberdade”, “justiça”, “paz”, “amor”, etc. no materialismo carecem de conteúdo humano, confundem-se com as sombras de tais coisas que parecem existir nos animais. O próprio conceito de “pessoa” é esvaziado, ficando o Homem reduzido a um “número” cuja função é servir a “espécie” (chamada de “sociedade”). Se a “espécie” assim o exigir, não haverá nenhum inconveniente em sacrificar o “indivíduo”: poder-se-á com toda paz saqueá-lo, ou trancafiá-lo num hospital psiquiátrico ou eliminá-lo. O que conta é somente o bem da “espécie”, como na Zoologia.

Tal é a tremenda conclusão do coletivismo, especialmente o marxista.

Se realmente queremos o que é bom para nós mesmos e para a Sociedade – que está composta não por meros indivíduos, mas por pessoas de valor único e irrepetível –, então temos de ter a honradez de contemplar o Homem em toda sua integridade. Não basta ver somente um corpo dotado de sentidos e instintos. Isso equivale a não ver o Homem, da mesma forma que aquele que vê somente uma das seções – a vertical ou a horizontal – de um cilindro não vê o cilindro: confunde-o com um círculo ou com um quadrado, e pode até chegar à conclusão de que o cilindro é um círculo quadrado, um absurdo, portanto, que só pode existir como uma vã ilusão mental. Pode-se chegar inclusive a negar a possibilidade de existirem cilindros, da mesma forma como foi negado que exista a alma humana imortal. Esquartejou-se o Homem, cortando-o pela metade, até o momento em que o “sábio”, diante da platéia e da mesa de dissecação, sentencia: “como não vejo a alma em parte alguma, ela não existe” (aplausos). O mesmo fez aquele astronauta soviético, que declarou triunfante que Deus não existe porque não viu ninguém lá em cima, no seu passeio pelo espaço.

O Homem é um “cilindro” muito peculiar: é infinito em altura, não tem topo, não tem limite superior, e por isso só uma “seção” totalmente “vertical” é capaz de revelar sua dimensão transcendente à matéria. Mas não é difícil descobrir essa dimensão usando um pouco de bom senso. Mais adiante voltaremos ao assunto. Não deixa de ser certeira aquela frase gráfica de Unamuno, mesmo sendo ele um homem confuso quanto à religião: “o que chamam de espírito parece-me muito mais material (quer dizer “perceptível”, “claramente cognoscível”) do que aquilo que chamamos de matéria; sinto minha alma mais importante e mais sensível que meu corpo”.

Foi dito – e com toda a razão – que o materialismo é o mais curioso esforço jamais feito pelo espírito humano na tentativa de provar a não-existência do espírito humano. Isso porque “só um ser pensante – ou seja: espiritual – pode pôr-se a «demonstrar», mediante argumentos, o materialismo” (2). O materialismo, deslumbrado pela semelhança morfológica entre o Homem e o macaco, confunde os dois. Ocorre aquilo que observa Johannes Torelló: “objetos de estudo essencialmente diferentes, ao serem projetados pelo cientista contra um plano inferior, aparecem-lhe como sendo iguais. Assim, a projeção de uma esfera, a de um cilindro e a de um cone são a mesma: um círculo ambíguo e tentador aos olhos de espíritos simplistas, capazes de concluir que no fundo um cilindro, uma esfera e um cone são realmente a mesma coisa”.

É certo que temos um corpo e uns sentidos que reclamam satisfações para as suas necessidades vitais. Mas antes de qualquer coisa possuímos algo que excede tudo o que procede da matéria: o entendimento, ávido e insaciável de verdade. Já desde criança o homem sadio começa a “exasperar” os adultos com as suas intermináveis perguntas: “Mamãe, o que é isso?”, “para que serve aquilo?”, e sobretudo “por que?”, “por que?”, “por que?”… É que o menino ou a menina está buscando desde já uma resposta última e definitiva, que não remeta a outro “por que”, que seja algo assim como o grande “Porquê” que tudo explique, que seja a Verdade Primeira e a Origem de todas as outras verdades. A criança pergunta por Deus, procura Deus, precisa de Deus desde que sua inteligência desperta para o “uso da razão”. É o que diz a célebre oração de Santo Agostinho: “Criaste-nos, Senhor, para Ti, e o nosso coração está inquieto enquanto não descansar em Ti.” (3)

A única coisa capaz de saciar e aquietar o entendimento é o conhecimento de Deus: não um conhecimento qualquer, mas todo o conhecimento de que seja capaz. Somente assim alcança a sua perfeição suprema, a sua plena felicidade.

A vontade, por outro lado, é uma ilimitada capacidade de amar o bem (não “infinita” mas “ilimitada”, porque por muito que ame sempre quer amar mais), que não se conforma com qualquer bem: deseja o ótimo, o máximo bem. Quando a vontade põe o seu amor numa criatura e a possui de algum modo, logo fica satisfeita; mas em seguida percebe que aquilo não é o máximo: que resta um vazio ainda sem preencher, que ainda está longe de alcançar a plenitude de bem e de amor que buscava. Isso porque todos nós – sabendo-o ou não – queremos a Deus, buscamos a Deus, temos fome de Deus como Verdade primeira e Bem infinito, como Sabedoria e Amor plenos: somente nEle – no amoroso conhecimento de Deus – encontra-se a perfeição, a plenitude humana, a felicidade sem sombras. Esse é o nosso fim, o nosso máximo bem comum objetivo.

A FELICIDADE PERFEITA E O BEM SUPREMO

Agora que sabemos – não detalhadamente mas com profundidade – o que é o Homem, sabemos também qual é o seu bem fundamental e indispensável. Independentemente do que eu queira ou pense, do que me apeteça ou do que eu escolha, o meu Bem é Deus. Assim encontramos um critério objetivo de bondade: no mundo, será bom para mim – bom moralmente, bom em sentido “ético” – aquilo que me aproxime de Deus (ou pelo menos não me afaste dEle), e será mau para mim aquilo que me afaste de Deus, ainda que me apeteça. Aquilo que me aproxima de Deus será também uma perfeição do meu ser pessoal; o contrário, aquilo que me afasta dEle, sempre e sem dúvida será prejudicial ao que há de mais íntimo em mim.Essa é já uma conclusão de suma importância. Mas por outro lado é claro que surge uma nova pergunta: na prática, o que me aproxima de Deus e o que me afasta dEle? A luz natural da razão é um dom que todos recebemos e que nos permite descobrir quais são as exigências fundamentais do ser humano, cujo conjunto é a lei natural, formulada sinteticamente no Decálogo pelo próprio Deus.

Assim se entendem bem aquelas palavras de João Paulo II: “A lei moral é a lei do Homem, porque é a lei de Deus”. Com efeito, “a verdade expressa pela lei moral é a verdade do ser, tal como é pensado e querido por Deus que nos criou”. É por isso que “há uma profunda consonância entre a parte mais verdadeira de nós próprios e aquilo que Deus nos manda, apesar de que – usando as palavras do Apóstolo – sinto nos meus membros outra lei que repugna a lei do meu espírito(Rom 7, 22). (4)”

Se em nossa mente não existisse a sombra do pecado original e se a nossa vontade não tivesse sido debilitada, conheceríamos bem a nós mesmos e, conseqüentemente, conheceríamos sem nenhuma dúvida o que é bom: teríamos uma visão clara da lei moral. Acontece que encontrar essa lei nos custa trabalho, até porque também nos custa trabalho vivê-la. Mas Deus, na sua infinita Misericórdia, veio em nosso auxílio – fez-se Homem! – para nos dizer com palavras humanas qual é o caminho que nos faz de verdade homens perfeitos e felizes: Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida (Jo 14,6). E não nos oferece apenas uma felicidade natural: mediante a Sua Encarnação, Vida, Paixão, Morte e Ressurreição, abriu-nos as portas para nada menos do que a vida íntima de Deus Uno e Trino. Colocou à nossa disposição a Sua própria Felicidade: o máximo, não já relativamente ao Homem, mas em absoluto.

E para que todos os homens possam conhecer facilmente – sem disputas ou dúvidas angustiosas, sem esforços hercúleos – quais são as coisas que nos aproximam de Deus e quais as que nos afastam dEle, fundou a Igreja Una, Santa, Católica e Apostólica. Dotada de um Magistério autorizado, assistido sempre pelo Espírito Santo – o Espírito da Verdade –, a Igreja é capaz de traçar, a cada momento, o mapa certo e seguro dos caminhos do bem. Temos aí – especialmente os católicos, mas também de algum modo todos os outros – o grande critério, a grande luz, a grande segurança para discernir o bem do mal. Assim podemos conhecer essa “norma suprema da vida humana”, que o Concílio Vaticano II recorda como “a própria lei divina, eterna, objetiva e universal, pela qual Deus ordena, dirige e governa o Universo e os caminhos da comunidade humana.” (5)

NOTAS:

(1) SANTO AGOSTINHO, Confissões, X, 17
(2) CORNELIO FABRO, Dios, Madrid, Ed. Rialp, 1961, p. 203
(3) SANTO AGOSTINHO, o.c., I, l
(4) Audiência geral, 27-VII-1983
(5) Decreto Dignitatis humanae, nº 3.

Fonte: Arvo.net

 

Leia para sair da bolha

Nossos dias estão lotados de distrações. Leitores pouco cautelosos correm o risco de ceder à tentação de tentar acompanhar, em tempo real, todas as polêmicas do dia na internet. Acabam lendo muito, mas aprendendo pouco. Em tempos de excesso de informação, quem não tem um plano para organizar suas leituras será inevitavelmente soterrado por elas. É preciso tomar cuidado, porém, para não cair em outra armadilha: a de evitar todos os textos que não nos agradam.

Em excesso, a disciplina na leitura corre o risco de virar alienação. Esse mal acomete fãs de livros com muita frequência. Por mais que se orgulhem de ler “de tudo – até bula de remédio”, na prática há muitos leitores que resistem a mudar seus hábitos. Conheço muitos leitores de não-ficção que não têm paciência para a ficção, e vice-versa. Alguns só leem alta literatura e torcem o nariz para os best-sellers sem piedade. Outros se prendem a um gênero, como a literatura fantástica ou policial, e jamais dão uma chance a outros temas. Há até quem só dê atenção para os clássicos e acham absurda a ideia de perder tempo com literatura contemporânea.

Para leituras na internet, fugir da monotonia é ainda mais difícil. As redes sociais e sites de busca são feitos para mostrar aquilo que queremos ler. Quanto mais demonstramos atenção por um autor ou um assunto, maior a chance de depararmos com eles no futuro. Textos que ignoramos ou rejeitamos aparecem com menos frequência.

No Facebook, muitas vezes aceleramos o processo ao “limpar” a timeline e remover  pessoas ou páginas com quem discordamos em assuntos polêmicos. Em seu livro O filtro invisível, o americano Eli Pariser faz um alerta contra esse hábito. O risco é ficar preso numa bolha em que nada ataca nossas convicções e não descobrimos nada novo. Não há mal nenhum em não saber tudo sobre o último escândalo político, não participar de todos os bate-bocas no Facebook ou não acompanhar em tempo real o cotidiano das celebridades. Os livros que mais gostamos de ler são prioridade. A leitura, antes de tudo, deve ser um prazer. Ler notícias que não nos interessam ou comprar um livro muito diferente do que costumamos ler, ou seja, se aventurar em territórios desconhecidos, pode ser importante.

Quando sentir que suas leituras estão se tornando monótonas, tente dar uma chance a um texto que você jamais leria. O exercício exige paciência. Quem só está acostumado a ler clássicos pode levar algum tempo para se acostumar com um best-seller atual. Por mais que o impulso inicial seja largar o livro, resista. Tente se acostumar com o desconhecido. Talvez você se surpreenda e descubra novas paixões. A leitura serve para nos tirar da bolha. Quem não desafia a própria ignorância é incapaz de aprender.

Fonte Original AQUI

Era 1802 quando o ilustre físico Pierre-Simon de Laplace simbolicamente abre as cortinas para uma nova era no pensamento humano com um dos mais épicos diálogos da história da ciência. Diz a anedota que, Napoleão, quando se deparou com o cientista fez a pergunta que toda a Europa pretendia ter feito: “M. Laplace, me disseram que você escreveu este grande livro sobre o sistema do universo e jamais sequer mencionou seu Criador.” A resposta de Laplace foi incisiva: “Não foi necessária tal suposição.” Em 1814, após a morte de Napoleão, Laplace acrescentou que “a curva descrita por uma simples molécula de ar é regulada de modo tão certo quanto os planetas”, para depois concluir que o destino de todo átomo no universo é matematicamente previsível, em princípio, pelas forças da natureza. E assim as portas do determinismo científico foram escancaradas. Deem-nos as condições iniciais e as equações das forças da natureza e tudo o mais pode ser conhecido pelas leis do movimento. Se, em teoria, todos movimentos podem ser previamente determinados, então o corolário é óbvio: não há livre-arbítrio.

Cem anos se passaram, veio a teoria do caos, a mecânica quântica e as teorias sociais deterministas falharam miseravelmente. A modernidade então se descambou em puro pessimismo, mas sem perder a essência do corolário laplaciano. A busca da generalização, ao modo da ciência, passou a ser escarnecida como “positivismo”, e a “teoria” passou a se tornar um conjunto de reflexões pessimistas e obscuras sobre a inacessibilidade do outro e seus significados. Com efeito, Wittgenstein disse uma vez – no decorrer da formulação de sua filosofia inicial, subseqüentemente repudiada – que o mundo não é a totalidade das coisas, mas dos fatos. Na atmosfera intelectual atual, sente-se que o mundo não é a totalidade das coisas, mas os significados. Tudo é sentido e o significado é tudo, e a hermenêutica é seu profeta. Na pos-modernidade, o movimento e suas idéias são demasiados etéreos e voláteis para serem capturados e apreendidos com precisão. Dos fatos à linguagem foi a saga que a modernidade cumpriu e toda a subjetividade com respeito ao mundo externo trouxe uma certeza estonteante: mesmo que não pudéssemos ter certeza do mundo exterior, poderíamos pelo menos ter certeza de nossos próprios sentimentos, pensamentos e sensações. Se estas são engendradas por significados impostos a matérias-primas incipientes e incoerentes, e os significados vêm em pacotes culturais contraditórios, então essa certeza e ponto de descanso não podem ser encontrados dentro de nós, sequer por auto-reflexão, mas apenas socialmente. A verdade é então elusiva, polimorfa e subjetiva.

Nós somos construídos socialmente, argumentam os pós-modernos, e nós não estamos, mesmo enquanto adultos, conscientes da construção social por trás do nosso discurso. Nós podemos pensar que estamos falando livremente e fazendo nossas próprias escolhas, mas a mão invisível da construção social está fazendo de nós o que realmente somos. O que você pensa e o que você faz e mesmo como você pensa é governado pelas suas crenças subjacentes adquiridas por meio da linguagem e seus significados. Claro está, o corolário laplaciano segue: não pode portanto haver livre-arbítrio. Mas tudo fica ainda pior quando levamos o raciocínio ainda mais adiante. Vejamos. Se o discurso é em si algo distintivo porque constrói quem somos e está por trás de todas as ações nas quais nos engajamos e se, como uma forma de ação, ele pode e faz mal a outras pessoas, e se, por fim, toda a sociedade deve aceitar que qualquer forma de ação danosa precisa ser restringida por lei, então nós precisamos aceitar a censura. Tudo o mais no ativismo pós-moderno pode então ser resumidos nesta única palavra: censura. 

A vida em sociedade passa então a ser a luta de todos contra todos em uma indelével e inexorável jornada de agressões entre distintas comunidades linguísticas, pois se grupos diferentes são construídos de forma diferente, de acordo com sua linguística e origem distintas – brancos e negros, homens e mulheres são, por exemplo, construídos de formas diferentes -, e uma vez que universos linguístico-sociais e ideológicos distintos entram em conflito, então o discurso dos membros de cada grupo é visto como um veículo pelo qual os interesses concorrentes dos grupos entram em combate. E não haverá forma de resolver o conflito, porque dessa perspectiva você não pode dizer, “vamos resolver isso de forma racional”. O que a razão é, é em si construída por condições anteriores que fizeram quem você é. O que parece racional para você não é o que é racional para o outro grupo. E de fato, onde pode haver razão onde não há livre-arbítrio? Consequentemente, toda a discussão necessariamente se reduzirá a ver quem fala mais alto e o convívio social é todo reduzido a mera política. Não há portanto outra saída para a pos-modernidade senão a barbárie. 

Por Lacombi Lauss

O cardeal Robert Sarah (foto acima) prefeito desde 2014 da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, afirmou nesta semana que “diluir a doutrina moral católica não vai atrair os jovens” – e isso vale também para os ensinamentos católicos sobre a sexualidade humana.

Ao falar durante o Sínodo dos Jovens no Vaticano, o cardeal nascido em Guiné, na África, declarou, no último dia 16 de outubro, o que considera que a Igreja tem de fazer:

Propor corajosamente o ideal cristão que corresponde à doutrina moral católica e não diluí-lo, escondendo a verdade para atrair os jovens ao seio da Igreja”.

O cardeal Sarah observou que os ensinamentos da Igreja até podem não ser compartilhados por todos, mas ninguém pode acusá-la de não ser clara. No entanto, essa clareza nem sempre chega a todos os fiéis:

“Falta clareza por parte de alguns pastores ao explicarem a doutrina”.

E este fato, segundo o purpurado, exige “um profundo exame de consciência”.

Ele mencionou a passagem evangélica do jovem rico para destacar a radicalidade de Jesus, que lhe disse para vender tudo, doar aos pobres e então segui-Lo.

“Jesus não aliviou nenhuma das suas exigências no seu chamado”.

E a Igreja também não deveria aliviá-las, reforçou em seguida o prefeito da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos.

Sarah recordou ainda que os jovens ambicionam “justiça, transparência na luta contra a corrupção e respeito à dignidade humana”. É um grave erro “subestimar o alto idealismo dos jovens”, além de uma falta de respeito que “fecha as portas para um processo real de crescimento, maturidade e santidade. Ao respeitarmos e promovermos o idealismo dos jovens, podemos conseguir que eles se tornem o recurso mais precioso de uma sociedade que quer crescer e melhorar”.

O cardeal guineense tem acumulado elogios e conquistado grande respeito de jovens católicos ansiosos por clareza e firmeza na exposição e na preservação da doutrina católica.

Dom Henrique Soares da Costa, bispo de Penedo, AL, publicou em seu blog neste último 12 de setembro as seguintes considerações sobre tendências da sociedade atual. Elas são válidas para a reflexão e a discussão:

***

Escrevi há algum tempo… Escreveria de novo, cada palavra:

Aonde vamos? Até onde chegará a vulgaridade da nossa sociedade de consumo, que tudo consome e extingue de moral, de respeitabilidade, de senso de vergonha, de pudor, de limite que constrói e amadurece, de tudo quanto aprendemos dos nossos antepassados que era justo, reto, belo, louvável, digno?

Eis a sociedade ocidental: perdeu sua matriz geradora, a fé cristã. Foi o cristianismo a principal seiva a alimentar a consciência do Ocidente, foi a fé cristã a raiz que sustentou nossa civilização e deu-lhe em grande medida os parâmetros morais que a fez valorizar a dignidade da pessoa, o sentido da liberdade, a compaixão e a responsabilidade em favor dos mais fracos, a dignidade da mulher, o valor do corpo, etc. É esta moral que vai desaparecendo na sociedade ocidental pós-cristã, agora moribunda e irremediavelmente condenada à morte em seus valores.

Assim, tudo se pode esperar de deriva, de confusão moral, de leviandade, de inversão de valores! Pode alguém não concordar, mas afirmo: não se mantém a longo a moralidade de um povo se se elimina sua matriz religiosa. Ocidente ateu, Ocidente em franca decadência moral!

Por que escrevo isto? Pelo leilão de virgindade! Isto mesmo – e imagino que você, meu Leitor, já tenho visto a internet: um jovem russo de 23 anos e uma jovem brasileira de 20 anos estão leiloando sua virgindade. Ela quer construir casas para os pobres(!) com o dinheiro arrecadado; ele, tímido(!), heterossexual, pede que respeitem(!) sua sexualidade e os homossexuais não façam lance como candidatos a parceiros do moço virgem – até agora os maiores lances são de homens!

Que pensar de tudo isto? É condenável do ponto de vista humano, do ponto de vista cristão e de todos os pontos de vista que partam de algum critério de decência!

O nome disso? Prostituição vulgar e grosseira falta de pudor e de vergonha, falta de senso de limite e de ridículo!

Nada justifica que pessoas brinquem assim com sua sexualidade e, pior ainda, num tremendo mau exemplo, difunda sua imoralidade como algo louvável. E mais um detalhe: os familiares apoiam ou, no mínimo, respeitam! Eis aonde chegamos! Nem Roma no seu período de degradação moral pagã chegou a estes requintes!

Um outro exemplo: nesta semana, uma menina norte-americana de apenas 15 anos, foi candidamente à escola vestindo uma camisa com sugestiva inscrição: “Eu gosto de v…”. A menina é homossexual e faz questão de propagar sua situação. A escola pediu que ela não mais vestisse aquela camisa no ambiente escolar. A reação foi decidida: a garota considerou-se tolhida no seu livre direito de expressão e acusou a escola de hipocrisia! Sua mãe, inacreditavelmente, concordou com a filha!

Basta! Não me alongarei mais! Não merece! Somente chamo atenção para a triste situação moral em que nos encontramos e da qual coisas desse tipo são sintomas. Mas, se olharmos bem, em maior ou menor escala, a mentalidade pagã e imoral (e não somente no aspecto sexual) está por toda parte, aplaudida, endossada, defendida e difundida.

Não é de se estranhar: tire Deus como absoluto; onde ancorar, como alicerçar qualquer moralidade? Se não há o Bem, a Verdade, então tudo pode ser bem – o meu bem –, tudo pode ser verdade – a minha verdade!

Como pode um cristão aplaudir um mundo assim? Pense nisto, porque tal mundo o cerca, o instiga a posicionar-se nas suas decisões, bate à porta da sua vida e não permite, na prática que você seja neutro. Não é possível ser neutro! Como você se coloca, meu Leitor amigo?

Certamente, um discípulo de Cristo não deve se amargurar, não deve ser soberbo, não deve se julgar melhor que ninguém, não deve condenar em bloco o mundo, não se arvora em juiz mesquinho, feito beata de novela, não demoniza tudo e todos. Mas, sabe distinguir o bem do mal – e seu critério é Cristo, o Filho de Deus, que a todos julgará.

O cristão não deve ter medo de dizer claramente que o mal é mal e que o bem é bem! Deve respeitar e dialogar com todos, mas deve também, serena e fortemente, lutar, combater para que a sociedade, se não consegue mais ver a Deus como inspirador de sua valoração moral, ao menos se inspire e se fundamente no que de mais nobre, sóbrio e belo a consciência humana retamente formada pode produzir.

Uma coisa é carta: uma moral e uma ideia de liberdade que tenham como centro a realização da pessoa sem limite algum, como um absoluto desvinculado de qualquer referência e compromisso com o bem, a sensibilidade e a consciência dos outros, são moral e liberdade doentias: moral imoral e liberdade escrava do próprio eu, num solipsismo insuportável, imaturo e destrutivo.

Estejamos atentos para não cair nessas loucuras nem deixar que nossa sociedade enverede ainda mais por este mau caminho em que, infelizmente, já anda metida…

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Do blog Visão Cristã, de Dom Henrique Soares da Costa

Relativismo, verdade e fé
Ángel Rodríguez Luño, Doutor em Filosofia e Educação, professor de Teologia Moral da Pontificia Università della Santa Croce (Roma)

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Em diversas ocasiões e com diversas palavras, Bento XVI tem manifestado a sua convicção de que o relativismo tem se convertido no problema central que a fé cristã tem que enfrentar nos nossos dias [2].

Alguns meios de comunicação têm interpretado essas palavras como referidas quase exclusivamente ao campo da moral, como se respondessem à vontade de qualificar do modo mais duro possível todos os que não aceitam algum ponto concreto do ensinamento moral da Igreja Católica. Esta interpretação não corresponde ao pensamento nem aos escritos de Bento XVI. Ele alude a um problema muito mais profundo e geral, que se manifesta primariamente no âmbito filosófico e religioso, e que se refere à atitude intencional profunda que a consciência contemporânea – crente ou não crente – assume facilmente com relação à verdade.

A referência à atitude profunda da consciência perante a verdade distingue o relativismo do erro. O erro é compatível com uma adequada atitude da consciência pessoal com relação à verdade. Quem afirmasse, por exemplo, que a Igreja não foi fundada por Jesus Cristo, afirmá-lo-ia porque pensa (equivocadamente) que essa é a verdade e que a tese oposta é falsa. Quem faz uma afirmação deste tipo, pensa que é possível atingir a verdade. Aqueles que a atingem – e na medida em que a atingem – têm razão e aqueles que sustentam a afirmação contraditória se equivocam.

A filosofia relativista, porém, diz que é preciso resignar-se com o fato de que as realidades divinas e as que se referem ao sentido da vida humana, pessoal e social, são substancialmente inacessíveis, e que não existe uma via única para aproximar-se delas.

Cada época, cada cultura e cada religião têm utilizado diversos conceitos, imagens, símbolos, metáforas, visões etc. para expressá-las. Essas formas culturais podem opor-se entre si, mas, com relação aos objetos aos quais se referem, teriam todas elas igual valor. Seriam diversos modos – cultural e historicamente limitados – de aludir de modo muito imperfeito a realidades que não se podem conhecer. Em definitivo, nenhum dos sistemas conceituais ou religiosos teria, sob qualquer aspecto, um valor absoluto de verdade. Todos seriam relativos ao momento histórico e ao contexto cultural; daí a sua diversidade e, inclusive, a sua oposição. Mas, dentro dessa relatividade, todos seriam igualmente válidos enquanto vias diversas e complementares para aproximar-se de uma mesma realidade, que, substancialmente, permanece oculta.

Num livro publicado antes de sua eleição como Romano Pontífice, Bento XVI se referia a uma parábola budista [3]. Um rei do norte da Índia reuniu um dia um bom número de cegos que não sabiam o que é um elefante. Fizeram com que alguns dos cegos tocassem a cabeça e lhes disseram: “isto é um elefante”. Disseram o mesmo aos outros, enquanto faziam com que tocassem a tromba, ou as orelhas, ou as patas, ou os pelos da extremidade do rabo do elefante. Depois, o rei perguntou aos cegos o que é um elefante e cada um deu explicações diversas, conforme a parte do elefante que lhe haviam permitido tocar. Os cegos começaram a discutir, e a discussão foi se tornando violenta, até terminar numa briga de socos entre os cegos, que constitui o entretenimento que o rei desejava.

Este conto é particularmente útil para ilustrar a ideia relativista da condição humana. Nós, os homens, seríamos cegos que corremos o perigo de absolutizar um conhecimento parcial e inadequado, inconscientes da nossa intrínseca limitação (motivação teórica do relativismo). Quando caímos nessa tentação, adotamos um comportamento violento e desrespeitoso, incompatível com a dignidade humana (motivação ética do relativismo). O lógico seria que aceitássemos a relatividade das nossas idéias, não só porque isso corresponde à índole do nosso pobre conhecimento, mas também em virtude do imperativo ético da tolerância, do diálogo e do respeito recíproco. A filosofia relativista se apresenta a si mesma como o pressuposto necessário da democracia, do respeito e da convivência. Mas essa filosofia não parece dar-se conta de que o relativismo torna possível a burla e o abuso por parte de quem tem o poder em suas mãos: no conto, o rei que quer se divertir a custa dos pobres cegos; na sociedade atual, aqueles que promovem os seus próprios interesses económicos, ideológicos, de poder político etc. à custa dos demais, mediante o manejo hábil e sem escrúpulos da opinião pública e dos demais recursos do poder.

O que tudo isto tem a ver com a fé cristã? Muito.

Porque é essencial ao Cristianismo o apresentar-se a si mesmo como religio vera, como religião verdadeira [4]. A fé cristã se move no plano da verdade, e esse plano é o seu espaço vital mínimo. A religião cristã não é um mito, nem um conjunto de ritos úteis para a vida social e política, nem um princípio inspirador de bons sentimentos privados, nem uma agência ética de cooperação internacional.

A fé cristã, antes de mais, nos comunica a verdade acerca de Deus, ainda que não exaustivamente, e a verdade acerca do homem e do sentido de sua vida [5].

A fé cristã é incompatível com a lógica do “como se”. Não se reduz a dizer-nos que temos de nos comportar “como se” Deus nos tivesse criado e, por conseguinte, “como se” todos os homens fôssemos irmãos, mas afirma, com pretensão veritativa, que Deus criou o céu e a terra e que todos somos igualmente filhos de Deus. Diz-nos, além disto, que Cristo é a revelação plena e definitiva de Deus, «resplendor de sua glória e imagem de seu ser» [6], único mediador entre Deus e os homens [7] e, portanto, não pode admitir que Cristo seja somente o rosto com o qual Deus se apresenta aos europeus [8].

Talvez convenha repetir que a convivência e o diálogo sereno com os que não têm fé ou com aqueles que sustentam outras doutrinas não se opõem ao Cristianismo; na verdade, é todo o contrário. O que é incompatível com a fé cristã é a ideia de que o Cristianismo, as demais religiões monoteístas ou não monoteístas, as místicas orientais monistas, o ateísmo etc. são igualmente verdadeiros, porque são diversos modos limitados, cultural e historicamente, de se fazer referência a uma mesma realidade, que, no fundo, nem uns nem outros conhecem.

Isto é, a fé cristã se dissolve , no plano teórico, a perspectiva da verdade, segundo a qual aqueles que afirmam ou negam o mesmo não podem ter igualmente razão nem podem ser considerados como representantes de visões complementares de uma mesma realidade.

  1. O relativismo religioso

A força do Cristianismo e o poder para configurar e sanar a vida pessoal e coletiva que tem demonstrado ao longo da história, consiste em implicar uma estreita síntese entre fé, razão e vida [9], na medida em que a fé religiosa mostra à consciência pessoal que a razão verdadeira é o amor e que o amor é a razão verdadeira [10]. Essa síntese se rompe se a razão que nela deveria entrar for relativista. Por isso, dissemos no início que o relativismo se converteu no problema central que a evangelização tem que enfrentar nos nossos dias. O relativismo é assim problemático porque – ainda que não chegue a ser uma mutação de época da condição e da inteligência humanas – comporta uma desordem generalizada da intencionalidade profunda da consciência com relação à verdade, que tem manifestações em todos os âmbitos da vida.

Em primeiro lugar, existe hoje uma interpretação relativista da religião. É o que atualmente se conhece como “teologia do pluralismo religioso”. Esta teoria teológica afirma que o pluralismo das religiões não é só uma realidade de fato, mas uma realidade de direito. Deus quereria positivamente as religiões não cristãs como caminhos diversos através dos quais os homens se unissem a Ele e recebessem a salvação, independentemente de Cristo. Cristo tem, no máximo, uma posição de particular importância, mas é só um dos caminhos possíveis e, desde logo, nem exclusivo nem inclusivo dos demais. Todas as religiões seriam vias parciais, todas poderiam aprender das outras algo da verdade sobre Deus, em todas haveria uma verdadeira revelação divina.

Essa posição descansa sobre o pressuposto da essencial relatividade histórica e cultural da ação salvífica de Deus em Jesus Cristo. A ação salvífica universal da divindade se realizaria através de diversas formas limitadas, segundo a diversidade de povos e culturas, sem se identificar plenamente com qualquer delas.

A verdade absoluta de Deus não poderia ter uma expressão adequada e suficiente na história e na linguagem humana, sempre limitada e relativa. As ações e as palavras de Cristo estariam submetidas a essa relatividade, pouco mais ou pouco menos que as ações e as palavras das outras grandes figuras religiosas da humanidade. A figura de Cristo não teria um valor absoluto e universal. Nada do que aparece na história poderia ter esse valor [11]. Não nos deteremos agora em explicar os diversos modos em que se tem pretendido justificar esta concepção [12].

Destas complexas teorias ocupou-se a encíclica Redemptoris Missio [13], de João Paulo II, e a declaração Dominus Iesus [14]. É fácil dar-se conta de que tais teorias teológicas dissolvem a cristologia e relativizam a revelação levada a cabo por Cristo, que seria limitada, incompleta e imperfeita [15], e que deixaria um espaço livre para outras revelações independentes e autónomas [16]. Para os que sustentam estas teorias é determinante o imperativo ético do diálogo com os representantes das grandes religiões asiáticas, que não seria possível não se aceitar como ponto de partida que essas religiões têm um valor salvífico autônomo, não derivado e não dirigido a Cristo. Também neste caso o relativismo teórico (dogmático) obedece, em boa parte, a uma motivação de ordem prática (o imperativo do diálogo). Estamos, pois, perante outra versão do conhecido tema kantiano da primazia da razão prática sobre a razão teórica.

Faz-se necessário esclarecer que o que acabamos de dizer em nada prejulga a salvação dos que não têm a fé cristã. O único que se diz é que também os não cristãos que vivem com retidão segundo a sua consciência se salvam por Cristo e em Cristo, embora nesta terra não o tenham conhecido. Cristo é o Redentor e o Salvador universal do género humano. Ele é a salvação de todos os que se salvam.

  1. O relativismo ético-social

Passamos a ocupar-nos do relativismo ético-social. Esta expressão significa não só que o relativismo atual tem muitas e evidentes manifestações no âmbito ético-social, mas também – e principalmente – que se apresenta como se estivesse justificado por razões ético-sociais. Isto explica tanto a facilidade com que se difunde quanto a escassa eficácia que têm certos intentos de combatê-lo.

Vejamos como Habermas formula essa justificação ético-social. Na sociedade atual encontramos um pluralismo de projetos de vida e de concepções do bem humano. Este fato nos propõe a seguinte alternativa: ou se renuncia à pretensão clássica de pronunciar juízos de valor sobre as diversas formas de vida que a experiência nos oferece ou, então, se há de renunciar a defender o ideal da tolerância, para o qual cada concepção da vida vale tanto como qualquer outra, ou, pelo menos, tem o mesmo direito a existir [17]. A mesma ideia é expressa de modo mais sintético por um conhecido jurista argentino: «Se a existência de razões para modos de vida não fosse utilizada para justificar o emprego da coação, a tolerância seria compatível com os compromissos mais profundos» [18]. A força deste tipo de raciocínio consiste em que, historicamente, tem ocorrido muitas vezes que nós, os homens, temos sacrificado violentamente a liberdade sobre o altar da verdade. Por isso, com um pouco de habilidade dialética não é difícil fazer passar por defesa da liberdade atitudes e concepções que, na realidade, caem no extremo oposto de sacrificar violentamente a verdade sobre o altar da liberdade.

Isto se vê claramente no modo em que a mentalidade relativista ataca os seus adversários. A quem afirme, por exemplo, que a heterossexualidade pertence à essência do casamento, não se lhe diz que essa tese é falsa, mas se lhe acusa de fundamentalismo religioso, de intolerância ou de espírito anti-moderno. Menos ainda se lhe dirá que a tese contrária é verdadeira, isto é, não se tentará demonstrar que a heterossexualidade nada tem a ver com o casamento. O característico da mentalidade relativista é pensar que esta tese é uma das teses que existe na sociedade juntamente com a sua contrária e, talvez, com outras mais, e que, em definitiva, todas têm igual valor e o mesmo direito a serem socialmente reconhecidas. Ninguém é obrigado a se casar com uma pessoa do mesmo sexo, mas quem quiser fazê-lo deve poder fazê-lo. É o mesmo raciocínio com o qual se justifica a legalização do aborto e de outros atentados contra a vida de seres humanos que, pelo estado em que se encontram, não podem reivindicar ativamente os seus direitos, e cuja colaboração não é necessária a nós. Ninguém é obrigado a abortar, mas quem pensar que deve fazê-lo, deve poder fazê-lo.

Pode-se criticar a mentalidade relativista de muitas formas, conforme as circunstâncias. Mas o que nunca se deve fazer é reforçar, com as próprias palavras ou atitudes, aquilo que nessa mentalidade é mais persuasivo. Isto é: quem ataca o relativismo não pode dar a impressão de que está disposto a sacrificar a liberdade sobre o altar da verdade. Pelo contrário, deve-se demonstrar que se é muito sensível ao fato – de per si, bastante claro – que a passagem da perspectiva teórica à perspectiva ético-política tem de se fazer com muito cuidado. Uma coisa é ser inadmissível que aqueles que afirmam e aqueles que negam o mesmo tenham igualmente razão; outra coisa seria dizer que só os que pensam de um determinado modo podem desfrutar de todos os direitos civis de liberdade no âmbito do Estado. Deve-se evitar qualquer tipo de confusão entre o plano teórico e o plano ético-político: uma coisa é a relação da consciência com a verdade e outra, bem diferente, é a justiça para com as pessoas. Seguindo esta lógica, poder-se-á mostrar depois, de modo crível, que de uma afirmação que pretende dizer como as coisas são, isto é, de uma tese especulativa, só cabe dizer que é verdadeira ou falsa. As teses especulativas não são nem fortes nem débeis, nem privadas nem públicas, nem frias nem quentes, nem violentas nem pacíficas, nem autoritárias nem democráticas, nem progressistas nem conservadoras, nem boas nem más. São simplesmente verdadeiras ou falsas. O que pensaríamos de quem, ao expor uma demonstração matemática ou uma explicação médica, começasse a dizer que esses conhecimentos científicos têm só uma validade privada ou então que constituem uma teoria muito democrática? Se existe completa certeza de que um fármaco permite deter um tumor, trata-se, pura e simplesmente, de uma verdade médica, e não há nada mais a se acrescentar. Porém, é cabível qualificar uma forma de conceber os direitos civis ou a estrutura do Estado de autoritária ou de democrática, de justa ou de injusta, de conservadora ou de reformista. Ao mesmo tempo, é preciso recordar que existem realidades, como o casamento, que são, a uma só vez, objeto de um conhecimento verdadeiro e de uma regulação prática segundo a justiça. Em caso de conflito, é preciso encontrar o modo de salvar tanto a verdade quanto a justiça para com as pessoas, para o qual se há de ter muito em conta – entre outras coisas – o aspecto “expressivo” ou educativo das leis civis [19].

No Discurso de 22 de dezembro de 2005, Bento XVI distinguiu com muita nitidez a relação da consciência com a verdade das relações de justiça entre as pessoas. Transcrevo um parágrafo muito significativo: «se a liberdade religiosa for considerada como expressão da incapacidade do homem para encontrar a verdade e, consequentemente, tornar-se uma canonização do relativismo, então passa impropriamente de necessidade social e histórica para o nível metafísico. Assim, priva-se-lhe do seu verdadeiro sentido, com a consequência de não poder ser aceite por quem crê que o homem é capaz de conhecer a verdade de Deus e, com base na dignidade interior da verdade, está ligado a tal conhecimento.

Uma coisa completamente diversa é, porém, considerar a liberdade de religião como uma necessidade derivante da convivência humana, aliás, como uma consequência intrínseca da verdade que não pode ser imposta do exterior, mas que o homem deve fazer sua mediante um processo do convencimento. O Concílio Vaticano II, com o Decreto sobre a liberdade religiosa, reconhecendo e fazendo seu um princípio essencial do Estado moderno, recuperou novamente o patrimônio mais profundo da Igreja» [20].

Bento XVI dá mostras de um fino discernimento quando reconhece que no Concílio Vaticano II a Igreja fez seu um princípio ético-político do Estado moderno, e que o fez recuperando algo que pertencia à tradição católica. Sua posição está cheia de matizes. E, desse modo, esclarece que «quem pensava que com este “sim” fundamental para a era moderna se dissipassem todas as tensões e a “abertura ao mundo” assim realizada transformasse tudo em pura harmonia, tinha subestimado as tensões internas e também as contradições da mesma era moderna; tinha subestimado a perigosa fragilidade da natureza humana que em todos os períodos da história e em cada constelação histórica é uma ameaça para o caminho do homem». E se afirma que «não podia ser intenção do Concílio abolir esta contradição do Evangelho em relação aos perigos e aos erros do homem», diz também que é um bem fazer todo o possível por evitar as «contradições erróneas ou supérfluas, para apresentar a este nosso mundo a exigência do Evangelho em toda a sua grandeza e pureza» [22]. E, assinalando o fundo do problema, acrescenta que «[o] passo dado pelo Concílio em direção à era moderna, que de modo tão impreciso foi apresentado como “abertura ao mundo” pertence definitivamente ao perene problema da relação entre fé e razão, que se apresenta sempre de novas formas» [23].

O raciocínio de Bento XVI mostra um modo de fazer frente de modo justo e matizado a uma posição tremendamente insidiosa como é a do relativismo ético-social.

  1. Os problemas antropológicos do relativismo

Dissemos que o relativismo no campo ético-social se apoia numa motivação de ordem prática: quer permitir fazer algo a quem o deseja, sem produzir dano aos demais, e isto seria uma ampliação da liberdade. Mas o valor dessa motivação é só aparente. A mentalidade relativista comporta uma profunda desordem antropológica, que tem custos pessoais e sociais muito altos. A natureza desta desordem antropológica é bastante complexa e altamente problemática. Aqui vou mencionar só dois problemas.

O primeiro é que a mentalidade medieval está unida a uma excessiva acentuação da dimensão técnica da inteligência humana e dos impulsos ligados à expansão do eu com os quais essa dimensão da inteligência está relacionada, o que leva consigo a depressão da dimensão sapiencial da inteligência e, por conseguinte, das tendências transitivas e transcendentes da pessoa, com as quais esta segunda dimensão da inteligência está aparentada.

O que aqui se chama dimensão técnica da inteligência humana e que outros autores chamam por outros nomes [24] é a evidente e necessária atividade da inteligência que nos permite orientar-nos no meio ambiente, garantindo a subsistência e a satisfação das necessidades básicas. Cunha conceitos, capta relações, conhece a ordem das coisas etc. com a finalidade de dominar e de explorar a natureza, fabricar os instrumentos e obter os recursos que necessitamos. Graças a esta função da inteligência, as coisas e as forças da natureza tornam-se objetos domináveis e manipuláveis para o nosso proveito. Deste ponto de vista, conhecer é poder: poder dominar, poder manipular, poder viver melhor.

A função sapiencial da inteligência visa, pelo contrário, a entender o significado do mundo e o sentido da vida humana. Cunha conceitos não com a finalidade de dominar, mas de alcançar as verdades e as concepções do mundo que possam dar resposta satisfatória à pergunta pelo sentido de nossa existência, resposta que, em longo prazo, nos resulta tão necessária como o pão e a água.

A sistemática fuga ou evasão do plano da verdade, que estamos chamando mentalidade relativista, comporta um desequilíbrio destas duas funções da inteligência e das tendências que a ela estão ligadas. O predomínio da função técnica significa o predomínio, em nível pessoal e cultural, dos impulsos voltados aos valores vitais (o prazer, o bem estar, a ausência de sacrifício e de esforço), através dos quais se afirma e se expande o eu individual. A depressão da função sapiencial da inteligência comporta a inibição das tendências transitivas, isto é, das tendências sociais e altruístas e, sobretudo, uma diminuição da capacidade de auto-transcendência, em razão do que a pessoa fica encerrada nos limites do individualismo egoísta.

Em termos mais simples: o afã ansioso de ter, de triunfar, de subir, de descansar e de se divertir, de levar uma vida fácil e prazenteira, prevalece com sobras sobre o desejo de saber, de refletir, de dar um sentido ao que se faz, de ajudar os demais com o próprio trabalho, de transcender o reduzido âmbito dos nossos interesses vitais imediatos. Fica quase bloqueada a transcendência horizontal (voltada aos demais e à coletividade) e também a vertical (voltada aos valores ideais absolutos, voltada a Deus).

O segundo problema está estreitamente vinculado ao primeiro. A falta de sensibilidade para com a verdade e para com as questões relativas ao sentido do viver leva consigo a deformação – quando não a corrupção – da ideia e da experiência da liberdade; da própria liberdade, em primeiro lugar. Não pode estranhar que a consolidação social e legal dos modos de vida congruentes com a desordem antropológica de que estamos falando se fundamentem sempre invocando a liberdade, realidade certamente sacrossanta, mas que é preciso entender em seu verdadeiro sentido.

Invoca-se a liberdade como liberdade de abortar, liberdade de ignorar, liberdade de não saber falar senão com palavras soezes, liberdade de não dever dar razão das próprias convicções, liberdade de incomodar e, antes de tudo e sobretudo, liberdade de impor aos demais uma filosofia relativista, que todos teríamos que aplaudir como filosofia da liberdade. Quem lhe negar o aplauso será submetido a um processo de linchamento social e cultural muito difícil de aguentar. Penso que estas considerações podem ajudar a entender em que sentido Bento XVI tem falado de “ditadura do relativismo”.

Tudo isto também tem muito a ver, negativamente, com a fé cristã. Quem pensa que existe uma verdade e que essa verdade pode ser alcançada com certeza mesmo em meio de muitas dificuldades, quem pensa que nem tudo pode ser de outra maneira, isto é, quem pensa que a nossa capacidade de modelar culturalmente o amor, o casamento, a geração, a ordenação da convivência no Estado etc. tem limites que não se podem superar, pensa, em definitiva, que existe uma inteligência mais alta do que a humana. É a inteligência do Criador, que determina o que as coisas são e os limites do nosso poder de transformá-las. O relativista pensa o contrário. O relativismo parece um agnosticismo. Quem o puder pensar até o final verá muito mais afim o ateísmo prático. Não me parece compatível a convicção de que Deus criou o homem e a mulher com a ideia de que pode existir um casamento entre pessoas do mesmo sexo. Isto só será possível se o casamento fosse simplesmente uma criação cultural: nós o estruturamos, há séculos, de um modo, e agora somos livres para estruturá-lo de outro modo.

O relativismo responde a uma concepção profunda da vida que trata de impor. O relativista pensa que o modo de alcançar a maior felicidade possível de se conseguir neste pobre mundo nosso – que sempre é uma felicidade fragmentada e limitada – é evadir o problema da verdade, que seria uma complicação inútil e nociva, causa de tantas quebra-cabeças. Mas esta concepção se encontra com o problema de que os homens, além de desejarem ser felizes, de quererem gozar, de aspirarem a carecer de vínculos para se moverem à vontade, têm também uma inteligência e desejam conhecer o sentido do seu viver.

Aristóteles iniciou a sua Metafísica dizendo que todo homem, por natureza, deseja saber [25]. E Cristo acrescentou que «não só de pão vive o homem, mas de toda palavra que sai da boca de Deus» [26].

O desejo de saber e a fome da palavra que procede da boca de Deus são inextinguíveis, e nenhum aparato comunicativo ou coercitivo poderá fazê-los desaparecer da vida humana. Por isso, estou convencido de que a hora atual é uma hora cheia de esperança e de que o futuro é muito mais promissor do que parece. Com as presentes reflexões, que não querem ser negativas, só se pretendeu expor com seriedade e realismo o aspecto da presente conjuntura que Bento XVI tem chamado relativismo, bem como a sua incidência na prática e na difusão da fé cristã no mundo atual.

ÁNGEL RODRÍGUEZ LUÑO, DOUTOR EM FILOSOFIA E EDUCAÇÃO, E PROFESSOR DE TEOLOGIA MORAL DA PONTIFICIA UNIVERSITÀ DELLA SANTA CROCE (ROMA)

Notas

[1] Aqui teremos em conta os seguintes textos: Ratzinger, J.Fede, verità, tolleranza.

Il Cristianesimo e le religioni del mondo. Siena : Cantagalli, 2003 (trad. espanhola: Fe, verdad y tolerância. Salamanca : Ed. Sígueme, 2005); a homilia da “Missa pro eligendo Romano Pontifice”, celebrada na basílica vaticana em 18 de abril de 2005 e o importantíssimo Discurso de Bento XVI à Cúria Romana por ocasião do Natal, de 22 de dezembro de 2005.

[2] Cf., por exemplo, Ratzinger, J. Fede, verità, tolleranza. Il Cristianesimo e le religioni del mondo, cit., p. 121. Veja-se também a homilia anteriormente mencionada de 18 de abril de 2005.

[3] Cf. Ratzinger, J. Fede, verità, tolleranza…, cit. pp. 170 ss.

[4] Cf. ibid., pp. 170-192.

[5] Dizemos que o conhecimento de Deus que nos dá a fé não é exaustivo porque no Céu conheceremos a Deus muitíssimo melhor. No entanto, o que nos diz a Revelação é verdadeiro, e é tudo o que Deus quis dar-nos a conhecer de Si mesmo. Não há outra fonte para conhecer mais verdades acerca de Deus. Não há outras revelações.

[6] Hb 1, 3.

[7] Cf 1 Tm 2, 5.

[8] Esta é a tese defendida em princípios do século XX por E. Troeltsch.Cf. L’assoluteza del cristianesimo e la storia delle religioni. Napoli : Morano, 1968.

[9] Esta é uma idéia muito presente ao longo do livro anteriormente citado Fede, verità e tolleranza….

[10] Cf. Ratzinger, J. Fede, verità e tolleranza…, cit., p. 192.

[11] Uma exposição e uma defesa da tese pluralista pode se encontrar em: Knitter, P. No Other Name? A Critical Survey of Christian Attitudes towards the World Religions. Maryknoll (NY) : Orbis Books, 1985; Hick, J. An Interpretation of Religion. Human Responses to Transcendent. London : Yale University Press, 1989; Amaladoss, M. “The pluralism of Religions and the Significance of Christ”, In: IdemMaking All Things New: Dialogue, Pluralism and Evangelization in Asia. Anand : Gujarat Sahistya Prakash, 1990, pp. 243-268; Idem. “Mission and Servanthood” In: Third Millenium 2 (1999), pp. 59-66; Idem. “Jésus Christ, le seul sauveur, et la mission” In:Spiritus 159 (2000), pp. 148-157; Idem, “‘Do not judge…’ (Mt 7:1)” In: Jeevadhara 31/183 (2001), pp. 179-182; Wilfred, F. Beyond Settled Foundations. Madras : The Journey of Indian Theology, 1993.

[12] Uns afirmam que o Verbo não encarnado, Logos ásarkos ou Logos cósmico, desenvolve uma ação salvífica muito mais ampla que a do Verbo Encarnado, isto é, que a do Logos énsarkos (cf., por exemplo, Dupuis, J. Verso una teologia del pluralismo religioso. Brescia : Queriniana, 1997, p. 404). Porém, outros dizem que é o Espírito Santo que desenvolve uma ação salvífica separada e independente da de Cristo, e fundamentam no Espírito Santo o valor salvífico autônomo das religiões não cristãs e a verdadeira revelação contida nelas.

[13] Cf. João Paulo II. Carta Encíclica Redemptoris Missiosobre a permanente validade do mandato missionário, 07-XII-1990.

[14] Cf. Congregação para a Doutrina da Fé. DeclaraçãoDominus Iesus sobre a unicidade e a universalidade salvífica de Jesus Cristo e da Igreja, 06-VIII-2000.

[15] Cf. Dupuis, J. Verso una teologia del pluralismo religioso, cit., pp. 367 e 403.

[16] Cf. ibid., pp. 332 e 342.

[17] Cf. Habermas, J. Teoria della morale. Bari-Roma : Laterza, 1995, p. 88 (original: Erläuterungen zur Diskursrthik, Frankfurt am Main : Suhrkamp, 1991).

[18] Nino, C. S. Ética y derechos humanos. Un ensayo de fundamentación. Barcelona : Ariel, 1989, p. 195.

[19] Chama-se aspecto “expressivo” das leis civis o fato inegável de que as leis, além de permitir ou de proibir algo, expressam uma concepção do homem, da vida, do casamento e, desse modo, têm um efeito educativo de sinal positivo ou negativo.

[20] Bento XVI. Discurso à Cúria Romana por ocasião do Natal, 22-XII-2005.

[21] Ibidem.

[22] Ibidem.

[23] Ibidem.

[24] Philipp Lersch a chama função intelectual e denomina função espiritual da inteligência a que nós chamamos função sapiencial. Cf. Lersch, Ph. La estrutuctura de la personalidad, 4ª ed. Barcelona : Scientia, 1963, pp. 399-404.

[25] Cf. Aristóteles. Metafísica, I, 1: 980 a 1.

[26] Mt 4, 4
(Fonte: site do Opus Dei – Brasil AQUI)

O físico e matemático belga, que combinou ciência e fé em seus trabalhos, foi o primeiro a falar da origem do universo em expansão e com um passado infinito

O cientista e sacerdote católico belga Georges Lemaître com grande humildade foi capaz de corrigir o próprio Albert Einstein. Estamos falando do padre da Teoria do Big Bang, que tentou demonstrar a origem do universo.

Sem renunciar à sua fé católica, Lemaître falou de um passado infinito do universo, mas que não entrava em contradição com sua crença em um Deus criador do mundo, já que tanto Aristóteles quanto São Tomás de Aquino mostraram que a criação de um universo não precisaria de um começo no tempo.

Sua precocidade para a ciência, destacando-se em matemática e física, era paralela à sua vocação, já que aos 9 anos ele decidiu que seria sacerdote. Ele alcançou sucesso em ambos os âmbitos graças ao conselho de seu pai para que primeiro estudasse e depois fosse ordenado padre. Ele conseguiu bolsas de estudo, viajou pelo mundo e obteve reconhecimento, mas sua humildade permitiu que as honras e fama de suas descobertas e contribuições para a astronomia e astrofísica fossem creditadas a outros.
Talvez a definição mais precisa de Lemaître e suas descobertas tenha sido dada pelo próprio Albert Einstein, ao escutá-lo em uma conferência na Califórnia. Em pé, ele afirmou que a teoria da origem do universo “é a mais bela e satisfatória explicação da Criação que em algum momento eu tenha escutado”.

Georges Henri Joseph Édouard Lemaître nasceu em 17 de julho de 1894, na localidade belga de Charleroi. Ele era o mais velho entre os quatro irmãos e desde muito cedo mostrou sua precocidade em matemática e física, mas também em sua vocação pessoal, anunciando a seus pais, aos nove anos de idade, que queria ser padre.

Encorajado por seu pai, Georges Lemaître decidiu estudar primeiro, antes de entrar no seminário, e matriculou-se na Escola Superior Jesuíta do Sagrado Coração, em Charleroi, onde destacou-se em química, física e matemática. Em 1910, seu pai conseguiu um novo emprego e mudou-se com a família para Bruxelas. O jovem Lemaître, já com 16 anos, matriculou-se em outra escola jesuíta, o Colégio Saint Michel, onde seus professores descobriram suas habilidades excepcionais em matemática e física.

Embora ainda gostasse da ideia de se tornar padre, Georges decidiu estudar engenharia em vez de teologia. Em 1911 ingressou na Universidade Católica de Lovaina para fazer o curso de engenharia. Em julho de 1913, obteve o diploma e começou a trabalhar como engenheiro de minas.

A Primeira Guerra Mundial forçou-o a parar seus estudos e servir como voluntário no exército belga, alcançando o posto de Primeiro-Sargento. Por sua bravura, foi condecorado com a medalha da Cruz de Guerra, além de ter sido expulso de uma missão após ter dito ao instrutor que seus cálculos balísticos estavam errados. No entanto, as atrocidades vistas na guerra amplificaram sua vocação sacerdotal. Algum colega de aula viria a recordar posteriormente que sua vocação de fé e da ciência se mantinham em tamanha sincronia que ele era visto por aí lendo o livro de Gênesis da Bíblia da mesma maneira que lia artigos de equações de físicos franceses.

Retomou seus estudos e em 1920, aos 26 anos, foi premiado com a mais alta distinção, um doutorado em Ciências Matemáticas por sua tese ‘A aproximação de funções reais de várias variáveis’. Georges Lemaître também obteve um bacharelado em filosofia baseado no sacerdote italiano do século XIII, São Tomás de Aquino.

Seu passo seguinte foi dar início à sua caminhada para tornar-se padre, ao ingressar naCasa de Saint Rombaut, em outubro de 1920. Seus professores, notando seu interesse contínuo em matemática e física, sugeriram que ele estudasse o trabalho de Albert Einstein. Lemaître assim o fez, aprendendo sobre o cálculo do tensor e a relatividade geral dos livros escritos pelo famoso astrônomo matemático Arthur Eddington.

Em 1922, Lemaître apresentou a tese ‘A Física de Einstein’, que rendeu-lhe uma bolsa de estudos do governo belga e a possibilidade de ir para a Universidade de Cambridge (Inglaterra), como pesquisador de astronomia. Quase em paralelo, foi ordenado sacerdote em setembro de 1923, aos 29 anos. No entanto, ao invés de exercer como padre em uma paróquia ou colégio, Lemaître utilizou a bolsa para estudar a teoria da relatividade geral e trabalhar pessoalmente com Eddington, que sugeriu a Lemaître que começasse a trabalhar em um doutorado sobre o universo.

Eddington pediu a Lemaitre que aplicasse as regras da relatividade geral ao conteúdo de seu trabalho para ver quais seriam os resultados. Lemaître descobriu duas soluções para o problema de Eddington: a primeira consistia em uma proposta feita por Einstein, em 1917, de um universo fechado, estável e estático, cuja densidade de energia em massa fosse constante; a segunda estava relacionada com a proposta de Willem de Sitter, também em 1917, de um universo cujo comportamento em grande escala fosse dominado pela constante cosmológica (a densidade de energia do espaço vazio).

Georges Lemaître cruzou o Atlântico para conduzir pesquisas na Universidade de Harvard e também matriculou-se como aluno para um doutorado em Física no MIT(Instituto de Tecnologia de Massachusetts). Durante sua estada nos Estados Unidos, viajou muito e conheceu os mais importantes astrônomos e físicos do país, incluindoForest Ray Moulton, William Duncan MacMillan, Vesto Slipher, Edwin Hubble e Robert Millikan.

Georges retornou à Bélgica no verão de 1925 e, apoiado e recomendado por Eddington, foi nomeado professor associado de matemática na Universidade Católica de Lovaina. Em 1927, defendeu sua tese no MIT: ‘O campo gravitacional em uma esfera fluida de densidade invariante uniforme, segundo a teoria da relatividade’.

Neste novo papel de pesquisador e divulgador, Georges Lemaître realizou a derivação do que hoje é conhecida como a Lei de Hubble, que relata a velocidade com que uma galáxia se afasta e a sua distância. A famosa Conferência Solvay de 1927 contou com a presença da maioria dos principais físicos. Einstein também participou e falou com Lemaître, dizendo-lhe que suas ideias já haviam sido apresentadas por Friedmann, em 1922. Além disso, disse-lhe que, por mais que acreditasse que suas soluções para as equações da relatividade geral estivessem matematicamente corretas, traziam soluções que não eram fisicamente possíveis. Especificamente, Einstein disse-lhe: “Seus cálculos estão corretos, mas sua compreensão da física é abominável”.

Einstein não estava sozinho ao achar as ideias de Lemaître inaceitáveis. Pelo contrário, essa era a opinião de quase todos os cientistas. No entanto, em 1929, Hubble publicou um trabalho que apresentava grandes evidências de um universo em expansão, contradizendo a teoria de um universo estático, até então aceita.

Eddington e outros membros da Real Sociedade Astronômica (Royal Astronomical Society) começaram a trabalhar para tentar resolver o problema originado pela discrepância entre a teoria e a observação, com uma parte da teoria de Lemaître que os cientistas – incluindo Eddington – acharam impossível de aceitar: como foi que o universo teve um começo em um tempo finito no passado, da mesma forma que a religião católica defende no livro de Gênesis?

Lemaître respondeu às objeções a sua teoria em um documento publicado na revista Nature, em maio de 1931. “Se o mundo começou com um único quantum, as noções de espaço e tempo não teriam nenhum significado no princípio; só começariam a ter algum significado sensato quando o quantum original fosse dividido em um número suficiente de quanta. Se esta sugestão estiver correta, o começo do mundo aconteceu um pouco antes do começo do espaço e do tempo”. Em realidade, Lemaître sempre expressou que era importante manter uma separação entre as idéias científicas e as crenças religiosas sobre a criação.

Esta foi a primeira formulação explícita da Teoria do Big Bang, atualmente aceita e que naquele momento também era aceita pela maioria dos cientistas e a qual Georges chamou de “hipótese do átomo primordial”. Em 1933, Einstein e Lemaître disponibilizaram-se a ministrar uma série de conferências na Califórnia. Depois de ouvir Lemaître explicar sua teoria em um desses seminários, Einstein levantou-se e disse: “Esta é a mais bela e satisfatória explicação da Criação que em algum momento eu tenha escutado”.

As ideias de Georges Lemaître chegaram à imprensa popular, que o descreveu como o principal líder do momento. Um artigo no ‘New York Times’ mostrou uma foto dele e Einstein com a legenda: “Eles têm um profundo respeito e admiração um pelo outro”. E é o fato de que Lemaître tenha sido tanto um cientista quanto um padre católico que gerou certo fascínio na imprensa popular, até o ponto em que um jornalista escreveu acerca dele: “Não há conflito entre religião e ciência, repete Lemaître diversas vezes… Seu ponto de vista é interessante e importante não apenas porque ele é um padre católico ou um dos principais matemáticos e físicos de nosso tempo, mas porque ele é ambos”.

O maior opositor das hipóteses de Lemaître foi o astrônomo inglês Fred Hoyle, um dos arquitetos do modelo Estacionário. Na verdade, foi ele quem deu seu nome à teoria do Big Bang em uma entrevista de rádio para a BBC e o fez de maneira depreciativa.

Para o sacerdote belga Georges Lemaître, a história do universo divide-se em três períodos: o primeiro é chamado de “a explosão do átomo primitivo”, segundo o qual há cinco bilhões de anos existia um núcleo de matéria hiperdensa e instável que explodiu sob a forma de super-radioatividade. Esta explosão propagou-se durante um bilhão de anos e os astrônomos percebem até hoje seus efeitos sobre os raios cósmicos e as emissões X.

Depois vem o período de equilíbrio ou o universo estático de Einstein. Ele afirma que, após a explosão, estabelece-se um equilíbrio entre as forças de repulsão cósmicas na origem do acontecimento e as forças de gravitação. É durante esta fase de equilíbrio – que dura dois bilhões de anos – que se formam nós que dão origem às estrelas e galáxias.

Finalmente, acontecem os períodos de expansão, iniciados há 2 bilhões de anos, que demonstrariam que o universo está se expandindo a uma velocidade de 170 quilômetros por segundo de maneira indefinida.

Em 1948, George Gamov propôs uma nova descrição do começo do universo. E, embora ele seja considerado atualmente como o pai da teoria do Big Bang, as linhas mestras já estavam presentes de uma maneira muito clara na cosmologia de Lemaître.

O renomado padre belga obteve vários cargos na Pontifícia Academia das Ciências, sendo assessor pessoal do papa Pio XII e presidente da mesma em 1960. Em 1979, durante o discurso do Papa São João Paulo II à Pontifícia Academia das Ciências, por ocasião da comemoração do nascimento de Albert Einstein, ele citou algumas palavras de Lemaître sobre a relação entre a Igreja e a ciência:

“Por acaso a Igreja poderia ter necessidade de ciência? Não: a cruz e o Evangelho lhe bastam. Mas nada que seja humano é alheio ao cristianismo. Como poderia a Igreja se desinteressar na mais nobre das ocupações estritamente humanas: a investigação da verdade?”

Ao fim da sua vida, Georges Lemaître dedicou-se cada vez mais aos cálculos numéricos. Seu interesse pelos incipientes computadores e pela informática acabou por fasciná-lo completamente.

Ele morreu na cidade belga de Lovaina, em 20 de junho de 1966, aos 71 anos, dois anos depois de ter escutado a notícia da descoberta da radiação cósmica de fundo de microondas cósmicas, que era a prova definitiva de sua teoria astronômica fundamental do Big Bang.

O nome em uma cratera na Lua e em um veículo espacial da Agência Espacial Europeia (a ATV5), que nem sequer existe mais, são dois reconhecimentos quase insignificantes para a estatura humana e sua contribuição para a compreensão da origem do universoque nos acolhe.

Fonte: El País

A palavra “ética” é muito citada nos dias de hoje. Mas, nas discussões modernas, a palavra pode ter diferentes significados em diferentes situações. Se olharmos com cuidado, podemos ver que ela assume diferentes nuances de acordo com o contexto e a perspectiva do falante. Vejamos as diferentes perspectivas da ética, para que possamos ver a utilidade e a necessidade dos princípios éticos em nossa vida pessoal e social.

Ética como instituição

A ética é uma estrutura normativa para as práticas e princípios da sociedade, caracterizada pela sua prescritibilidade (qualidade do que é prescritível). O objetivo da ética como instituição social normativa é conectar os aspectos normativos com os desejos das pessoas, de modo a garantir o grau necessário de cooperação social para a sobrevivência, para o bem-estar e para a autorrealização dos membros da sociedade. Em outras palavras, é um sistema de princípios “institucionalizados” estabelecidos que nos dizem como devemos nos comportar como membros da sociedade a fim de melhor promover o nosso próprio bem e o da sociedade como um todo, procurando evidenciar a relação entre as normas e o resultado desejado do bem-estar.

Ética e direito

O objetivo geral da ética descrito acima está relacionado a outra grande instituição social normativa: o direito. A lei distingue-se da ética (pelo menos) nas seguintes formas: a lei é válida para os cidadãos de um território específico, sem necessariamente pretender ser um princípio universal; prescreve uma punição material para os transgressores, em vez de apenas dizer o que é certo ou errado; nos termos da lei, apenas um juiz está autorizado a aplicar a lei e a proferir uma sentença; e as normas jurídicas são respeitadas pelos cidadãos por medo da punição, não pelo valor intrínseco de fazer o que é certo.

Ética e moral

Embora de uso comum – esses dois termos são mais ou menos considerados sinônimos (as palavras gregas e latinas ethos e mores designam a mesma coisa: hábitos e costumes) – eles têm nuances diferentes. A palavra ética é geralmente usada quando se fala de princípios, enquanto a palavra moralidade se refere mais às convicções pessoais de alguém. Ao lidar com a moralidade, todos – e não apenas especialistas em moral – podem aprovar ou desaprovar, sem se engajar em uma reflexão ética. A ética pode ser descritiva, normativa ou aplicada; isto é, uma reflexão ética pode descrever o comportamento, dar-lhe diretrizes ou concentrar-se, sobretudo, na aplicação específica de teorias éticas.

A universalidade do julgamento moral

A conduta moral deveria ser justificável de um ponto de vista universal. Esta declaração é uma generalização da “regra de ouro” (“faça aos outros o que gostaria que fizessem a você”, ou “ame seu próximo como a si mesmo”), o que nos convida a “nos colocar no lugar do outro”. O princípio ético não pode ser devidamente justificado em termos de interesses especiais, particulares (egoísmo, considerações étnicas ou raciais, sexo, espécie etc.); deve ser igualmente aplicável a todos, em qualquer lugar.

Do ponto de vista moral, é irrelevante se o beneficiário de uma determinada ação sou eu, ou você, ou nossa raça (ou grupo étnico ou espécie); não posso agir de uma maneira que privilegie um grupo em detrimento de outros para vantagem pessoal ou por razões não substancialmente relevantes para o problema em questão. O que importa na moralidade é, propriamente falando, a possibilidade de transcender os interesses egoístas de grupos e facções.

Essas breves reflexões nos lembram que o bem pessoal e o bem comum estão relacionados. Não podemos favorecer um em detrimento do outro. O bem e o desenvolvimento da nossa sociedade serão sustentáveis ​​se o nosso bem pessoal for sustentável e, consequentemente, o bom comportamento de cada ser humano for uma condição necessária para garantir um futuro de progresso para nós e para as gerações futuras.

Autor: Javier Fiz Pérez

A universidade “deve estar ligada exclusivamente à autoridade da verdade” e, portanto, deve ser autônoma, livre “de autoridades políticas e eclesiásticas”. Por isso, se interroga sobre o que um papa tem a dizer no encontro com a universidade de sua cidade, Roma. Para responder, ele reflete acima de tudo sobre a natureza e a missão do papado e, depois, sobre a natureza e a missão da universidade.

Publicamos aqui a conferência do jesuíta italiano Federico Lombardi, ex-porta-voz da Santa Sé, proferida na International Academic Conference: In search of the truth. From Nicolaus Copernicus to Benedict XVI, realizada na Faculdade de Teologia da University of Nicolaus Copernicus, em Toruń, Polônia, 17-04-02018.

O discurso foi publicado no sítio da Fundação Ratzinger.

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Autor: Federico Lombardi

Ilustres professores, estudantes e amigos,

Estou muito grato pela honra que vocês me prestam, ao me acolherem nesta importante conferência e me dando a palavra por primeiro. Na realidade, estou ciente de que falar por primeiro não significa tanto que o meu discurso seja o mais importante, mas que, não podendo participar de todos os seus trabalhos por causa da minha grave ignorância da língua de vocês, é bom que meu discurso seja o primeiro, de modo que, depois, vocês fiquem mais livres para continuar os seus trabalhos na belíssima língua polonesa.

O meu breve discurso se propõe dois objetivos.

O primeiro é de oferecer uma contribuição para recordar um discurso do Papa Bento XVI, que é bastante significativo para quem trabalha na universidade, como vocês, mas que permaneceu menos conhecido do que outros. Justamente há três meses, em janeiro deste ano, celebrava-se o 10º aniversário desse discurso, e, por isso, eu o escolhi para esta intervenção.

O segundo objetivo, inspirando-se nesse discurso, é de expressar algumas ideias sobre a linha programática da Fundação Ratzinger, que eu represento e que tem a alegria de colaborar com vocês nesta ocasião e, se possível, também no futuro.

O discurso do Papa Bento de que falo é um discurso que, na realidade, nunca foi proferido. Recordo, aqui, muito brevemente os acontecimentos. Bento XVI havia sido convidado oficialmente pelo reitor da mais antiga e maior universidade de Roma, que se chama “La Sapienza” – fundada pelo Papa Bonifácio VIII em 1303 –, para visitar a universidade e fazer um discurso na Aula Magna. Alguns professores, em sua maioria ideologicamente orientados à esquerda, manifestaram-se contrários. Mas se tratava de relativamente poucas pessoas.

A data havia sido fixada para o dia 17 de janeiro, mas, nos dias anteriores, um grupo de estudantes ocupou a reitoria em protesto e iniciou uma contestação com tons muito duros contra a visita, dizendo que o Papa Bento era um expoente do obscurantismo contrário à cultura e que a universidade, como lugar da liberdade de pesquisa e depensamento, não podia aceitar essa visita. Tratava-se de uma pequena minoria, mas a repercussão foi grande. Para evitar tensões, Bento XVI renunciou à visita dois dias antes da data marcada, mas enviou o texto do discurso, que foi lido e aplaudido por muitos presentes.

Na realidade, o episódio continua sendo um fato de séria intolerância por parte daqueles que queriam se apresentar como arautos da razão e da liberdade, e muitíssimos intelectuais italianos, até mesmo não católicos, se envergonharam profundamente disso.

Mas eu não tenho a intenção de voltar sobre isso. Acho que hoje é preciso refletir mais sobre o conteúdo do próprio discurso, que se insere na série de muitos discursos dedicados por Bento XVI à natureza e à finalidade da universidade, e é provavelmente um dos mais importantes deles.

Bento XVI começa afirmando expressamente que a universidade “deve estar ligada exclusivamente à autoridade da verdade” e, portanto, deve ser autônoma, livre “de autoridades políticas e eclesiásticas”. Por isso, se interroga sobre o que um papa tem a dizer no encontro com a universidade de sua cidade. Para responder, ele reflete acima de tudo sobre a natureza e a missão do papado e, depois, sobre a natureza e a missão da universidade.

Bento reconhece naturalmente que a missão do papado é, acima de tudo, de guiar a comunidade dos fiéis, mas observa que essa comunidade vive no mundo e, portanto, as suas condições e as suas vicissitudes atuam sobre o conjunto da comunidade humana. Por isso, o papa “tornou-se cada vez mais uma voz da razão ética da humanidade” (à luz da autoridade internacional conquistada pelos papas recentes, em particular por João Paulo II, antes, e Francisco, hoje, isso parece ser completamente correspondente à nossa experiência).

Depois de pronunciar as palavras: “razão ética da humanidade”, Bento faz um aprofundamento muito interessante. Pode-se falar de “razão” ética, se os juízos do papa provêm da fé? Que validade eles podem ter para quem não compartilha essa fé? Por isso, Bento se pergunta: “O que é a razão? Como uma afirmação – acima de tudo, uma norma moral – pode se demonstrar como ‘razoável’?”.

Para responder Bento faz referência ao famoso filósofo político estadunidense John Rawls, que reconhece às doutrinas das grandes religiões o caráter de “razoabilidade” pois “derivam de uma tradição responsável e motivada, na qual, durante longos tempos, foram desenvolvidas argumentações suficientemente boas em seu sustento”.

De sua parte, Bento concorda e evidencia “que a experiência e a demonstração ao longo de gerações, o fundo histórico da sabedoria humana são também um sinal da sua razoabilidade e do seu duradouro significado”. A razão não deve ser a-histórico, “a sabedoria da humanidade como tal – a sabedoria das grandes tradições religiosas – deve ser valorizada”, não pode ser “jogada na lata de lixo da história das ideias”.

Bento conclui, então, a resposta à primeira pergunta dizendo que o papa fala à universidade “como representante de uma comunidade que conserva em de si um tesouro de conhecimento e de experiência éticos, que é importante para a humanidade inteira: nesse sentido, fala como representante de uma razão ética”.

Passando, depois, à pergunta sobre a natureza da universidade, o papa pensa que “a íntima origem da universidade está na ânsia de conhecimento que é própria do ser humano”. Ele quer saber o que é tudo o que o cerca. Quer verdade”.

Bento XVI identifica no interrogar-se de Sócrates a manifestação mais clara desse desejo de conhecer e enfatiza o fato de que Sócrates exerce a sua maiêutica justamente na crítica à antiga religião mítica e na busca de um Deus supremo e verdadeiramente divino. Para Bento, é fundamental entender que os cristãos dos primeiros séculos se reconheceram nesse exercício socrático: para eles, “o interrogar-se da razão sobre o Deus maior, assim como sobre a verdadeira natureza e sobre o verdadeiro sentido do ser humano (…), fazia parte da essência do seu modo de ser religioso”. Eles deviam “reconhecer como parte da própria identidade a busca fatigante da razão para alcançar o conhecimento da verdade inteira”.

Bento dá também outro passo aqui. “O ser humano quer conhecer – quer verdade”, e verdade é “coisa do ver, do compreender (…) mas – ele observa – nunca é somente teórica”. “Verdade significa mais do que saber: o conhecimento da verdade tem como propósito o conhecimento do bem. Este é também o sentido do interrogar-se socrático: qual é o bem que nos torna verdadeiros? A verdade nos torna bons, e a bondade é verdadeira”.

Os cristãos se reconhecem também nessa direção, ou, melhor, nessa direção, sua reflexão floresce esplendidamente. Os Padres sublinham que “a fé corresponde às exigências da razão em busca da verdade (…) é o ‘sim’ à verdade, em relação às religiões míticas”.

Assim, a dissolução da religião mitológica dá lugar “à descoberta daquele Deus que é Razão criadora e, ao mesmo tempo, Razão-Amor”. A fé cristã é profundamente “otimista” – observa Ratzinger – “porque a ela foi concedida a visão do Logos, da Razão criadora, que, na encarnação de Deus, revelou-se ao mesmo tempo como o Bem, a própria Bondade”.

Bento XVI está convencido de que, pelo fato de a busca da razão fazer parte da própria identidade cristã, a universidade “podia ou, melhor, devia nascer no âmbito da fé cristã, no mundo cristão”.

Nesse ponto, o discurso se desloca, então, para a estrutura da universidade medieval e para como a busca do conhecimento e da verdade se desenvolve nas suas quatro faculdades fundamentais: Medicina, Jurisprudência, Filosofia e Teologia.

Sobre a Medicina, Ratzinger não diz muito: limita-se a destacar que, na época, a medicina não era concebida tanto como “ciência”, mas como “arte de curar”, mas sua inserção na universidade significa que ela é “subtraída do âmbito da magia” para entrar cada vez mais no âmbito e sob a orientação da racionalidade.

Muito mais amplo é o discurso sobre a Jurisprudência, porque nela “se trata de dar forma justa à liberdade humana”. Aqui, Ratzinger dá um “salto ao presente” para levantar uma das questões debatidas hoje e que mais estão em seu coração: “É a questão de como pode ser encontrada uma normativa jurídica que constitua um ordenamento da liberdade, da dignidade humana e dos direitos humanos”.

Ratzinger a considera como uma questão crucial para a democracia moderna e para o futuro da humanidade, estando totalmente ciente dos problemas que nascem da contínua multiplicação dos “direitos humanos” e dos conflitos que surgem entre eles, e dos fundamentalismos ideológicos e religiosos (não foi à toa que Bento XVI abordou isso em várias ocasiões, como os grandes discursos públicos de Westminster Hall em Londres ou do Reichstag em Berlim). Sobre tal questão, portanto, ele quis dialogar de modo construtivo com grandes pensadores atuais.

No discurso de que estamos falando, ele indica como seu interlocutor significativo Jürgen Habermas (com quem – como sabemos – ele tivera, em 2004, um famoso diálogo público na Katholische Akademie de München). Ratzinger aprecia o fato de Habermas ver os fundamentos da legitimidade de um ordenamento estatal não só “na participação política igualitária de todos os cidadãos”, mas também na “forma razoável em que os contrastes políticos são resolvidos”. Ele aprecia sobretudo que essa “forma razoável” não é identificada por Habermas apenas com o cálculo aritmético das maiorias, mas como “um processo de argumentação sensível à verdade” (wahrheitssensibles Argumentationsverfahren).

Ratzinger conclui a parte do discurso dedicada a esse assunto com duas observações importantes. Por um lado, destaca com grande realismo que, na realidade do debate político, “a sensibilidade à verdade é sempre de novo subjugada pela sensibilidade aos interesses”. Por outro lado, considera significativo que Habermas, ao falar da “sensibilidade à verdade como elemento necessário no processo de argumentação política, insere novamente o conceito de verdade no debate filosófico e no político”.

No decorrer do diálogo – primeiro com Rawls, depois com Habermas, dois dos maiores filósofos políticos contemporâneos – são reacendidos, portanto, os conceitos de “razoabilidade” e de “verdade”, como conceitos inevitáveis se quisermos tentar fundamentar a legitimidade da convivência humana, o direito da liberdade, além de uma mera composição dos interesses graças às regras da maioria. Mas o que são a razoabilidade e a verdade?

Aqui, Ratzinger retorna à estrutura da universidade medieval e à função das outras duas faculdades: a filosofia e a teologia, às quais “era confiada a pesquisa sobre o ser humano na sua totalidade e, com isso, a tarefa de manter viva a sensibilidade pela verdade”. Isso ainda vale; porque não só naquela época, mas hoje também esse é “o sentido permanente de ambas as faculdades: serem guardiães da sensibilidade pela verdade, não permitir que o ser humano seja desviado da busca da verdade”.

Mas o que me parece particularmente significativo é aquilo que o Papa Bento diz logo depois, manifestando um espírito extraordinariamente humilde e respeitoso, verdadeiramente aberto ao diálogo com a grande cultura da história e do mundo.

De fato, após dizer que as faculdades de filosofia e teologia “não devem permitir que o ser humano se desvie da busca da verdade”, ele faz uma das afirmações mais emocionantes e impressionantes para mim de todo o discurso: “Como elas podem corresponder a essa tarefa? Essa é uma pergunta para a qual é preciso, sempre de novo, se esforçar e que nunca é posta e resolvida definitivamente. Assim, nesse ponto, nem eu posso oferecer propriamente uma resposta, mas sim um convite para permanecer a caminho com essa pergunta – a caminho com os grandes que, ao longo de toda a história, lutaram e buscaram, com as suas respostas e com a sua inquietação pela verdade, que continuamente remete para além de cada resposta individual”.

O título desta conferência diz: “Em busca da verdade: de Nicolau Copérnico a Bento XVI”. Com efeito, Bento XVI absolutamente não é – como afirmavam aqueles que o impediram de proferir essas palavras – uma pessoa que impõe aos outros com prepotência a sua posse da verdade, mas sim uma pessoa que se sente solidária com todos os grandes apaixonados buscadores da verdade, sabendo que, nesta terra, ninguém jamais a possuirá.

À universidade medieval da Europa cristã e, em particular, a São Tomás de Aquino, Ratzinger reconhece o mérito de ter destacado a autonomia da filosofia, isto é, “o direito e a responsabilidade próprios da razão que se interroga com base nas suas forças”. As religiões míticas haviam desaparecido, e, ao contrário, os escritos filosóficos de Aristóteles haviam se tornado acessíveis integralmente, e as filosofias judaicas e árabes haviam se apropriado deles. Nesse contexto, “o cristianismo, em um novo diálogo com a razão dos outros, que vinha encontrando, teve que lutar pela própria razoabilidade”. A filosofia, portanto, torna-se uma verdadeira faculdade, “uma parceira autônoma da teologia e da fé nela refletida”.

A relação entre filosofia e teologia é apresentada por Ratzinger em analogia com a famosa fórmula de Calcedônia sobre as duas naturezas de Cristo: “sem confusão e sem separação”.

Sem confusão. “A filosofia deve permanecer verdadeiramente como uma busca da razão na própria liberdade e responsabilidade (…)deve ver seus limites e sua grandeza”. “A teologia deve continuar recorrendo a um tesouro de conhecimento que não foi inventado por ela mesma”, mas que recebeu e que a supera, e, sendo inesgotável, sempre a coloca novamente em movimento.

Sem separação. Porque a filosofia não deve se isolar, mas se mover no grande diálogo da sabedoria histórica, que inclui também a riqueza trazida pelas religiões e, particularmente, pelo cristianismo. Enquanto a teologia – e também as autoridades eclesiais – deve aceitar a purificação da crítica da razão e, ao mesmo tempo, constituir uma força purificadora da própria razão, em particular libertando-a das pressões do poder e dos interesses. (Esse tema da purificação recíproca entre fé e razão voltou com força em outros grandes discursos de Ratzinger, como o da Westminster Hall, em Londres, onde era aplicado à contribuição positiva da fé cristã e das religiões na vida pública e na sociedade moderna).

Naturalmente, Ratzinger sabe muito bem que a universidade moderna abraça outras dimensões do saber que cresceram de modo extraordinário e maravilhoso. Ele fala sobretudo de dois âmbitos, o das ciências naturais e o das ciências históricas e humanísticas.

O discurso aqui se torna muito mais sintético, mas continua sendo rico em intuições de reflexão fundamentais.

“Abriu-se à humanidade uma medida imensa de saber e de poder; cresceram também o conhecimento e o reconhecimento dos direitos e da dignidade do ser humano.” Bento vê e admira o positivo, mas adverte com lucidez e coragem as ambiguidades e os riscos, algo que, aliás, é evidente nos eventos dramáticos da história atual. Como o discurso de que estamos falando se dirige ao mundo da universidade, ou seja, daqueles que estão envolvidos plenamente no estudo, no alargamento e no aprofundamento do saber, Ratzinger se encaminha à conclusão se concentrando nos riscos relacionados com essa dimensão da nossa vida histórica.

“O perigo do mundo ocidental – para falar apenas dele – é hoje que o ser humano, precisamente em consideração da grandeza do seu saber e poder, se rende perante a questão da verdade. E isso significa, ao mesmo tempo, que a razão, no fim, se curva diante da pressão dos interesses e da atratividade da utilidade, forçada a reconhecê-la como critério último.”

Do ponto de vista da vida da universidade, para Ratzinger, isso significa que a filosofia se degrada em positivismo e que a teologia se confine à esfera privada de um pequeno grupo. Significa que a razão se torna surda à sabedoria que lhe é oferecida pela fé cristã e se empobrece e seca. Perde a coragem da verdade e se apequena nas tarefas e nos horizontes.

Do ponto de vista da cultura europeia, para Ratzinger, isso significa que, “se quiser apenas se autoconstruir com base no círculo das próprias argumentações e – preocupada com a sua laicidade – se afasta das raízes das quais vive, então não se torna mais razoável e mais pura, mas se decompõe e se despedaça”.

A conclusão do discurso, nesse ponto, é clara: o papa não vai à universidade para impor de modo autoritário a fé, que só pode ser dada, mas para “manter desperta a sensibilidade pela verdade; convidar sempre de novo a razão a se pôr em busca do verdadeiro, do bem, de Deus” e a entrever ao longo da história as luzes que surgiram a partir da fé cristã, de modo a poder perceber Jesus Cristo como a Luz que ilumina a história e o caminho rumo ao futuro.

* * *

Quem conhece o pensamento de Joseph Ratzinger e os grandes discursos do pontificado de Bento XVI facilmente reconhecerá reflexões e temas familiares e característicos. O discurso poderia ser facilmente enriquecido e ampliado com inúmeras citações e referências. Evidentemente, não é o que pretendo fazer. Em vez disso, como mencionei no início, no rastro do que recordei, quero explicar brevemente o espírito no qual a nossa Fundação está se movendo e se propõe a operar.

Simplificando de maneira extrema, pode-se dizer que o grande pensamento de Joseph Ratzinger se desenvolveu ao longo de duas diretrizes principais complementares. Uma que podemos chamar de vertical: o chamado do primado de Deus, do Deus revelado por Jesus Cristo e aquilo que se segue para a vida cristã e da Igreja. E uma que podemos chamar de horizontal ou transversal: o diálogo com a cultura contemporânea, fundamentado na confiança na razão, considerada capaz de buscar e encontrar respostas razoáveis e verdadeiras para as suas perguntas.

O discurso que evoquei é típico dessa linha do diálogo, do exercício confiante da razão, que olha com otimismo e com gosto ao enriquecimento recíproco das diversas dimensões do saber, das ciências naturais às humanas, à filosofia, à teologia. Para isso, porém, a razão não deve se fechar nos estreitos limites do positivismo, deve se manter aberta à questão da verdade, do bem, do sentido da vida, de Deus. Também deve se manter aberta àquele fascinante diálogo com os grandes da história de que Ratzinger nos falou por referências, de Sócrates e a filosofia grega, às testemunhas da sabedoria do Antigo Testamento e das grandes religiões, ao Evangelho e aos Padres da Igreja, aos filósofos e aos teólogos medievais, a Copérnico e aos cientistas modernos, até Rawls e Habermas, filósofos políticos dos nossos dias…

Ainda no discurso evocado, vieram à tona alguns nós problemáticos cruciais para a humanidade do nosso tempo, aos quais Ratzinger dedicou muitíssima atenção. Cito dois em particular: os fundamentos do direito e de um ordenamento jurídico e político legítimo no mundo atual; os fundamentos de um uso responsável do imenso saber e poder dado ao ser humano pelo desenvolvimento da ciência e da tecnologia. Não se trata, de modo algum, de problemas abstratos. São de interesse comum evidente, estão no centro da preocupação da Igreja, como ficou claro a partir das últimas duas grandes encíclicas sociais, a Caritas in veritate de Bento XVI e a Laudato si’ do Papa Francisco. São também nós problemáticos que, para serem enfrentados na sua complexidade, requerem naturalmente abordagens interdisciplinares e, portanto, chamam ao apelo o mundo que, por sua vocação, é chamado ao diálogo interdisciplinar: o mundo universitário.

Por todos esses motivos, a nossa Fundação, embora se conservando em suas finalidades institucionais atenta a encorajar muitas iniciativas e direções do trabalho teológico e, mais amplamente, cultural, sente-se chamada hoje a promover em particular os esforços que se orientam ao exercício da “razão aberta”, do diálogo interdisciplinar que se ocupa de responder aos grandes desafios da humanidade atual.

Em certo sentido, queremos continuar o compromisso de Bento XVI com o diálogo com a cultura moderna, como um dos grandes serviços pela humanidade hoje, mesmo que se trate, às vezes, de um diálogo difícil, que pode se encontrar diante de fechamentos ou preconceitos, como nos recorda a recusa encontrada por Bento na Universidade de Roma.

Assim, o Simpósio Anual realizado no ano passado na Costa Rica, com a nossa contribuição e apoio, ocupou-se dos desafios da ecologia humana já enfocados pelo Papa Ratzinger e aprofundados mais ainda na encíclica Laudato si’. Por sua vez, o Simpósio em preparação para o próximo outono [europeu] se ocupará especificamente dos problemas dos fundamentos do direito e dos direitos humanos, no 70º aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Depois, em colaboração com a Universidade Francisco de Vitoria de Madri, está sendo desenvolvida a segunda edição do Prêmio Razão Aberta, que pretende promover pesquisas específicas e iniciativas de docência universitária que traduzam concretamente em ações aquele diálogo entre as diversas disciplinas – ciências naturais, humanas, da comunicação, artes, filosofia, teologia… –, diálogo no espírito comum da busca da verdade que Ratzinger deseja para que o saber não se despedace e se decomponha em setores não comunicantes, mas conserve a coragem e o gosto de responder às grandes perguntas do ser humano e da sociedade, sem excluir aquelas últimas sobre a origem e o fim, sobre o sentido e sobre Deus.

Se, nessas perspectivas, conseguirmos identificar linhas realistas de colaboração e de promoção na pesquisa, a nossa Fundação terá muita alegria em colaborar e dar a contribuição possível a ela.

Obrigado pela atenção!

Algumas pessoas são tão pobres que não têm nada além de dinheiro…

Não é de hoje que o luxo, a riqueza e o conforto são atrativos e valorizados nos meios sociais. Com o advento das mídias, incluindo-se a internet, a ostentação, por si só, tornou-se algo rentável, como que um meio de vida.

Existem pessoas que sobrevivem e ganham muito dinheiro, inclusive, apenas vivendo e se mostrando, estampando capas de revistas, programas de televisão, perfis que bombam nas redes sociais, por serem ricas e, consequentemente, famosas.

Nesse contexto, não raro se confundem os valores, deixando-se a essência de lado, enquanto se supervalorizam as aparências, ou seja, o que se tem sobrepõe-se ao que se é, porque o que se vê torna-se referência em quaisquer julgamentos sobre o outro.

Basta perceber que os cantores atuais também trabalham a imagem, seus corpos e cabelos, pois devem vender muito além de sua voz. Parece que qualquer talento necessariamente precise atrelar-se a um corpo esguio, uma vez que a mídia pede isso.

Nessa lógica materialista, as pessoas acabam sendo tomadas como objetos que podem ser comprados e usados. Infelizmente, tudo vem se tornando mercadoria: pessoas, sentimentos, casamento, empregos, como se o único meio de ocuparmos um lugar ao sol fosse pela sua compra.

Compram-se votos, cargos, vaga na faculdade, compram-se amizades, testemunhos, compra-se amor. Sobra pouco para quem não tem grana, mas o que sobra é, ao menos, real.

Nada substitui a satisfação e o contentamento proporcionados pelas conquistas que alcançamos com nossos próprios méritos, pelo que somos verdadeiramente e oferecemos afetivamente. Tudo o que chega com sinceridade e vontade fica e enriquece, pois soma e agrega valores nobres que dinheiro algum corrompe.

Quem fica junto pelo que temos dentro de nós traz intensidade, inteireza e completude. Serão os abraços reconfortantes, faça sol ou caia chuva torrencial, sem hesitações, sem meias verdades. Serão o corpo e a alma.

Tentar conquistar algo ou alguém por outros meios que não a nossa verdade nos igualará ao nível de quem se vende. Temos, portanto, que aprender a valorizar além das aparências, apreciando o melhor que cada um possui dentro de si.

É preciso cautela com o que brilha demais, afinal, lembremo-nos das mariposas: atraídas pela luz das lâmpadas, acabam antecipando o próprio fim.

(via Psiconlinews)

Já falamos sobre as orientações que o Beato Paulo VI deu em sua primeira encíclica a respeito da evangelização como diálogo compreensivo e amistoso. Se queremos, porém, evangelizar com fidelidade à fé da Igreja e com a esperança de sermos compreendidos pelos nossos interlocutores, é necessário tomar consciência de uma noção muito importante: a hierarquia das verdades.

Implicitamente, essa noção não é nenhuma novidade, mas corresponde a uma sensibilidade básica que guiou o anúncio da Igreja desde o início. Foi o Concílio Vaticano II que a retomou de modo explícito, dizendo que “existe uma ordem ou ‘hierarquia’ das verdades da doutrina católica, já que o nexo delas com o fundamento da fé cristã é diferente” (Decreto Unitatis Redintegratio, n. 11). O papa Francisco, por sua vez, a desenvolveu na sua exortação Evangelii Gaudium (n. 34-39).

“No mundo atual, com a velocidade das comunicações e a seleção interessada dos conteúdos feita pelos meios de comunicação de massa, a mensagem que anunciamos corre mais do que nunca o risco de aparecer mutilada e reduzida a alguns dos seus aspectos secundários”, constata Francisco. É algo que percebemos no dia-a-dia: quantas pessoas, por exemplo, têm a impressão de que a doutrina da Igreja se resume a um conjunto de proibições, pela maneira como temas como aborto, contracepção e homossexualidade são tratados nas notícias?

“O problema maior ocorre quando a mensagem que anunciamos parece então identificada com tais aspectos secundários, que, apesar de serem relevantes, por si sozinhos não manifestam o coração da mensagem de Jesus Cristo”, diz o papa. “Portanto, convém ser realistas e não pressupor que os nossos interlocutores conhecem o horizonte completo daquilo que dizemos ou que eles podem relacionar o nosso discurso com o núcleo essencial do Evangelho que lhe confere sentido, beleza e fascínio.”

Desvinculadas daquilo que é o núcleo essencial do anúncio cristão, questões sobre aspectos morais ou sacramentais podem parecer sem sentido. Não basta falar sobre ir à missa aos domingos ou sobre o sexo antes do casamento e simplesmente esperar que o ouvinte, instantaneamente, veja sentido no que dizemos. Nem sequer explicar exaustivamente esses pontos é suficiente. É preciso ir mais fundo e entender o horizonte no qual se situam essas questões, deixando claro qual a relação que existe entre elas e o coração do Evangelho.

Por isso, diz o papa, “uma pastoral em chave missionária não está obcecada pela transmissão desarticulada de uma imensidade de doutrinas que se tentam impor à força de insistir. Quando se assume um objetivo pastoral e um estilo missionário, que chegue realmente a todos sem exceções nem exclusões, o anúncio concentra-se no essencial, no que é mais belo, mais importante, mais atraente e, ao mesmo tempo, mais necessário. A proposta acaba simplificada, sem com isso perder profundidade e verdade, e assim se torna mais convincente e radiosa.”

Qual é, então, o essencial? Em que consiste a medula do anúncio cristão? Qual é a doutrina segura que a Igreja proclama? “Todas as verdades reveladas procedem da mesma fonte divina e são acreditadas com a mesma fé, mas algumas delas são mais importantes por exprimir mais diretamente o coração do Evangelho. Neste núcleo fundamental, o que sobressai é a beleza do amor salvífico de Deus manifestado em Jesus Cristo morto e ressuscitado”, escreve Francisco.

O amor de Deus que nos salva! Um amor tão incondicional, tão sublime, tão apaixonado que nos constrange, que nos faz corar de vergonha pela nossa frieza. Na vida, morte e ressurreição de Jesus, Deus torna esse amor imenso palpável, concreto, inegável.

O papa tira as consequências práticas disso para a nossa pregação: “Antes de mais nada, deve-se dizer que, no anúncio do Evangelho, é necessário que haja uma proporção adequada. Esta reconhece-se na frequência com que se mencionam alguns temas e nas acentuações postas na pregação. Por exemplo, se um pároco, durante um ano litúrgico, fala dez vezes sobre a temperança e apenas duas ou três vezes sobre a caridade ou sobre a justiça, gera-se uma desproporção, acabando obscurecidas precisamente aquelas virtudes que deveriam estar mais presentes na pregação e na catequese. E o mesmo acontece quando se fala mais da lei que da graça, mais da Igreja que de Jesus Cristo, mais do papa que da Palavra de Deus.”

E Francisco deixa claro: isso não significa negar ou esconder nenhum elemento da doutrina da Igreja. Pelo contrário, trata-se de fazer cada elemento ser compreendido na plenitude de seu significado, e não distorcido e tornado, assim, estéril e frágil, fazendo da doutrina da Igreja “um castelo de cartas”, como diz o papa.

Se falamos desses elementos sem evidenciá-los como decorrências daquele anúncio central de amor, o risco é grande. Muitas pessoas, não vendo sentido no que dizemos, não aceitarão a nossa pregação – e com razão. Diz o papa: “É que, então, não estaremos propriamente a anunciar o Evangelho, mas algumas acentuações doutrinais ou morais, que derivam de certas opções ideológicas.” A tarefa do evangelizador não é propagar verdades isoladas, fragmentadas e incompreensíveis, mas anunciar o amor misericordioso de Deus manifestado em Jesus Cristo e só então, a partir daí, servir à consciência do outro, explicitando como a nossa resposta de amor pode se concretizar nas diversas dimensões da nossa vida.

Autor Felipe Koller- Sempre Família

Em discussões infindáveis na internet, assim como na vida, às vezes, tudo que precisamos é admitir que estamos errados ou, melhor, simplesmente não se importar.

Meu cérebro, como todos os cérebros, abriga uma quantidade inacreditável de informações acumuladas, e uma vasta quantidade dela diz respeito a coisas que vi na TV. Sempre detestei Star Trek, e isso é uma coisa que expresso em voz alta sempre que posso, mas basta eu ver um pedacinho qualquer de A Nova Geração, que logo descubro se tratar de um episódio que já assisti.

Também nunca fui exatamente fã do programa da Oprah, mas sem dúvida que o assisti por centenas de horas. Muitos anos após ele ter saído do ar sigo lembrando-me de um insight que Oprah compartilhou com a audiência. Não lembro o contexto, mas Oprah se surpreendeu ao perceber que não precisava atender ao telefone só porque ele estava tocando.

Foi um insight significativo também para mim, e não porque atender ao telefone seja uma tarefa particularmente difícil, mas porque significa que há uma liberdade invisível nisso, que eu de alguma forma não havia percebido antes. Mesmo que eu seguisse atendendo todas as ligações, agora parecia haver uma escolha. Antes de considerar a questão, era um relacionamento de mestre-escravo, em que uma pessoa lá fora aperta alguns botões, e meu corpo se levantava (talvez me retirando de um episódio antigo de Star Trek).

Lentamente começo a reconhecer outra liberdade ignorada, que é a liberdade de deixar os outros estarem certos (ou pelo menos se sentirem certos) mesmo que eu pense que estão errados ou estejam errados em temas acidentais, não essenciais.

Reconheço que tenho um longo histórico de debater minhas visões, mesmo quando não estou bem certo de porque o estou fazendo. Uma vez eu estava discordando respeitosamente de um colega de trabalho com relação a alguma coisa, e depois de eu levantar um ponto particularmente bem colocado, ele saiu do tom esportivo e disse: “ você gosta mesmo de discutir, hein?!” Tentei dizer que ele estava errado, mas mais tarde indaguei a mim mesmo por alguns segundos se eu realmente gosto de discutir. Não, ele que gosta de discutir. Caso contrário ele teria percebido que eu estava certo.

E isso foi antes da internet se tornar onipresente em nossas vidas, antes de ir junto com a gente para o banheiro, quando “se conectar” era uma atividade que só se fazia em alguma momento do dia, em vez de ser um modo de percepção global adicional que acionamos a qualquer momento. Naquela época uma pessoa normal vivenciava muito menos momentos em que se considerava adequado levar uma questão além do ponto permitido pela polidez.

Hoje é alarmante o quanto é fácil se encontrar batendo com uma pessoa distante, sem rosto, que está tentando dizer a você que prover saúde para todos os cidadãos é uma conspiração comunista, enquanto você espera que sua batata termine de esquentar no micro-ondas. O fato de não ter um rosto aumenta ainda mais nosso impulso de discutir. Você já deve ter percebido que é bem menos agradável discutir com alguém quando se pode ver seus olhos.

Suponho que muitos de vocês nem tenham ideia do que estou falando. Você vê uma afirmação com que não concorda, ou que por conhecer os fatos sabe estar errada, e então tem o impulso de corrigir, iluminar ou reprimendar o outro, mas isso fica apenas em sua cabeça. Você pode ouvir alguém louvando Nancy Grace como uma defensora altruísta dos vulneráveis, ou defendendo que Godfather III foi tão bom quanto os outros filmes da trilogia, e ainda assim não sente desejo algum de fazer a outra pessoa parar de pensar isso. Você é sábio o suficiente para saber que a “luta justa” em áreas de comentário na internet é quase sempre pura condescendência, e só provê motivos para a ignorância fincar suas âncoras e aumentar o tom da voz.

Mas muitos entre nós não são sábios assim. Essas almas debatedoras, que, dentre nós, realmente se engajam (e, como vemos, há zilhões de nós: basta examinar os comentários no Facebook ou no Youtube) muitas vezes creem estar de alguma forma realmente mudando as mentes, erradicando a ignorância e o pensamento superficial. Não estamos nos entregando a um passatempo destrutivo, ou no mínimo inútil, estamos salvando o mundo do erro, um usuário sem rosto do Reddit de cada vez.  Não só está tudo certo em se engajar nesses pequenos conflitos, trata-se de um imperativo moral. Não podemos permitir que a ignorância siga sem oposição. A internet (e o mundo todo, mas é mais fácil na internet) precisa ser patrulhada em busca de crenças ruins.

E, é claro, raramente ocorre a nós que estejamos errados. Talvez todas minhas fontes estejam incorretas, e nós de fato engulamos oito aranhas por ano durante o sono. Mas no entusiasmo de corrigir os erros de outros, nunca nos ocorre que talvez sejamos nós o problema, ou pelo menos parte do problema. Estar errado dá a mesma sensação de estar certo, e essa é a única sensação que todos os envolvidos têm, em qualquer discussão, sobre qualquer coisa.

Para aqueles entre nós inclinados a discutir cada ponto, é fácil esquecer que temos a liberdade de simplesmente seguir nossas vidas e permitir que os pontos-de-vista “errados” sigam. É fantástico o quanto parece que uma conversa qualquer precisa de sua contribuição, da mesma forma que uma chaleira gritando precisa ser tirada da boca do fogão.

Mas não é a mesma coisa. Uma perspectiva diferente, não importa o quão absurda pareça, não é uma emergência. A civilização sobreviveu por 10 mil anos antes de eu e você chegarmos aqui com nossas correções sarcásticas e nossos retruques condescendentes, e não fizemos exatamente muita diferença desde que chegamos. Parece que não precisamos tentar fazer parar as pessoas pensarem o que não queremos que pensem, e que nossa energia provavelmente será mais bem aplicada em outra coisa.

Em outras palavras, é possível, em teoria, se aposentar da Patrulha da Crença Alheia.

Reconheço que as crenças têm consequências no mundo real. Ações prejudiciais vêm de crenças ruins. Não estou dizendo que não devemos jamais opor a ninguém, nunca confrontar ninguém, nunca se engajar com aqueles que discordam de nós. Só acho que fazer luvas, usar um cabeça dura qualquer nas medias sociais de sparrer, não afeta as crenças de ninguém de qualquer forma útil.

Acho que o conselho de Richard Carlson provavelmente é um mote ideal para isso: deixe os outros estarem “certos” a maior parte do tempo. Afirmar e defender suas visões demanda uma quantidade enorme de energia mental e realiza quase nada. Algumas vezes é importante (e até mesmo útil) se posicionar numa conversa, mas geralmente é apenas uma forma de se entregar à destruição da paz.

Por “aposentadoria da Patrulha da Crença Alheia”, estou falando principalmente de se aposentar de discussões que não sejam cara-a-cara, e em que não haja respeito mútuo. Na mesma hora que a motivação deixa de ser boa vontade e vira má vontade ou incomodação, fui embora.

Espero muito que você perceba o impulso que surge antes das palavras saírem. Pode ser muito automático. Quando você começa a considerar a aposentadoria, é incrível como se torna atraente dizer algo, jogar um “Bem, na VERDADE…”

É como ser o policial de narcóticos no programa de TV, convencido pela família a se aposentar, mas que então, sem perceber, se descobre envolvido em alguma aventura fantástica, atrás de pistas e perseguindo marginais em telhados. Ele acaba de volta àquele mundo, dando socos em algum traficante no topo de um trem em movimento, e não porque conscientemente decidiu retornar à vida, mas porque seus instintos de detetive eram mais aguçados do que a consciência do que estava fazendo.

Então veremos como as coisas se dão na aposentadoria. Já percebi como esse impulso surge frequentemente. Já apaguei tantas respostas meio-escritas para o Reddit que me pergunto se alguma vez contribuí com algo que não fosse refutar alguém ou fazer um comentário de escárnio.

O convido a se juntar a mim, caso você seja um veterano da Patrulha da Crença Alheia. Vamos largar completamente esse jogo de capa e espada e ir jogar tênis. Ainda podemos expressar nossas visões em milhares de outras formas que não sejam tão duras e intemperadas. Temos essa liberdade, e não o culpo se você não a reconhece. Mas já posso adiantar que é melhor se aposentar.

Só não vou discutir o assunto.

David Cain

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Evidentemente é verdadeiro que aconteceram as Cruzadas, a Inquisição e centenas de casos hediondos de pedofilia por parte de membros da Igreja católica.

E também é verdade, lamentavelmente, que os fatos concretos a respeito dessas e outras polêmicas têm sido tergiversados, manipulados e inflados de modo grosseiro por pessoas que não estão dispostas a debatê-los com base na verdade, mas sim na sua conveniência ideológica.

Para quem quiser de fato debater com mais objetividade a “trindade” Cruzadas-Inquisição-Pedofilia, sugiro os seguintes textos:

SOBRE AS CRUZADAS

O horror do Estado Islâmico desmascara 4 mitos sobre as cruzadas – LER

Cruzadas, inquisição e guerra contra as mulheres: é hora de derrubar mitos – LER

SOBRE A INQUISIÇÃO

Inquisição, uma breve história – LER

Inquisição espanhola, uma lenda negra passada a limpo pela BBC de Londres – LER

Em defesa da Igreja? Não: em defesa da história! – LER

A perseguição religiosa mais terrível da história: não, não é a Inquisição espanhola – LER

Terror vermelho na Espanha: seu professor de História não lhe contou sobre a perseguição sangrenta contra padres e freiras? – LER

SOBRE PEDOFILIA NA IGREJA

Onde é que foram parar todos aqueles padres pedófilos? – LER

4 casos de padres presos injustamente por crimes que não cometeram – LER

A verdade inteira sobre o abuso sexual contra menores – LER

SOBRE NAZISMO E PIO XII

O plano de Hitler para sequestrar o Papa Pio XII – LER

Por que Hitler odiava tanto Pio XII? – LER

Pio XII conseguiu salvar 63,04% dos judeus de Roma durante a perseguição nazista – LER

“Presidente de Hitler” não, mas “Papa de Hitler” sim? – LER

A Igreja realmente apoiou o nazismo? – LER

Existe o risco, e é alto, de que a maioria dos detratores da Igreja não se dê ao trabalho de ler nenhum desses artigos e mesmo assim continue a criticá-la, mas também existe a chance de que alguns tenham um gesto elementar de honestidade intelectual e se informem sobre todos os pontos de vista antes de formarem a sua opinião. Meus votos são de que, cada vez mais, prevaleça a segunda possibilidade.