Em um encontro para comunicadores que a Conferência Episcopal Italiana promoveu em novembro de 2002, João Paulo II mencionava o fato de que “as rápidas transformações tecnológicas estão determinando, sobretudo no campo da comunicação social, uma nova condição para a transmissão do saber, para a convivência entre os povos, para a formação dos estilos de vida e das mentalidades. A comunicação gera cultura e a cultura se transmite mediante a comunicação”. Esse nexo entre comunicação e cultura é uma das principais razões pelas quais o mundo da comunicação suscita grande atração entre aqueles que se interessam pela ética.
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“As rápidas transformações tecnológicas estão determinando, sobretudo no campo da comunicação social, uma nova condição para a transmissão do saber, para a convivência entre os povos e para a formação dos estilos de vida e das mentalidades”[1]. A adequada maturidade moral pessoal não é independente da comunicação e da cultura, que se expressa nos fins e estilos de vida socialmente aceitos, nas leis, na celebração dos acontecimentos e personagens do passado que melhor correspondem à identidade moral de uma sociedade.
A cultura possui algumas leis próprias, pelo que as ideias – e os sentimentos que estas fomentam – têm uma consistência e um desenvolvimento bastante autônomo. É como se as ideias, quando passam ao plano da cultura e da comunicação, se separassem das inteligências que as produziram e começassem a viver uma vida própria, desenvolvendo-se com uma força que depende somente de si mesma. Uma força que depende de sua consistência objetiva e de seu dinamismo intrínseco, talvez diferente da intenção que tinham as pessoas que as colocaram em circulação.
Por isso, todos que desejam influenciar na vida social com o espírito do Evangelho devem estar atentos à íntima relação entre comunicação e cultura; se se deseja intervir positivamente na criação e transmissão de modos de vida e de visões do homem, é preciso atender à consistência e ao previsível desenvolvimento das ideias, mais que à pretensa intenção das pessoas. Uma atitude polêmica, uma resposta brilhante ou ferina podem fazer calar a um adversário, mas se não se entende o que se expunha, nem se apreciou a consistência de suas ideias e as possíveis linhas de desenvolvimento que estas tinham, provavelmente não se colaborou no crescimento cultural nem mesmo se ofereceu uma alternativa cultural adequada; e assim, as ideias que foram rejeitadas, reduzindo ao silêncio a quem as promoveu, seguirão tendo uma vida longa. Somente se se consegue fazer uma proposta que conserve e supere o que de bom e de verdadeiro havia nas ideias que se considera justo combater, é que se dará um influxo cultural real.
Verdade e liberdade
Em mais de uma ocasião, João Paulo II destacou que o conflito entre verdade e liberdade está presente em boa parte dos problemas que afetam a cultura de nosso tempo[2]. A esse mesmo assunto referiu-se Bento XVI com o conceito de relativismo[3]. Diante das posições relativistas, tem-se a tentação de responder mostrando sua contradição interna: quem considera que toda verdade é relativa faz, na realidade, uma afirmação absoluta, e por isso contradiz-se a si mesmo. Trata-se de uma crítica verdadeira, mas culturalmente pouco eficaz, porque não busca entender os pontos de apoio que sustentam os fundamentos relativistas, nem parece compreender a questão que tentam solucionar.
A partir de uma perspectiva ético-social, as posições relativistas têm seu ponto de partida baseado no fato de que na sociedade atual existe uma pluralidade de projetos de vida e de concepções do bem, o qual parece propor uma disjuntiva: ou se renuncia à ideia de julgar os diferentes projetos de vida, ou há que se abandonar o ideal ou o modus vivendi caracterizado pela tolerância.Com outras palavras, um modo de vida tolerante requereria admitir que qualquer concepção de vida vale o mesmo, ou pelo menos tem o mesmo direito de existir que cada uma das demais; se isto não se admite, cai-se em um fundamentalismo ético e social.
O raciocínio é bastante enganador, mas apresenta-se com aparência de verdade por causa de um feito inegável, que constitui seu ponto de apoio: ao longo da história, e inclusive na atualidade, não faltou quem oprimisse violentamente a liberdade das pessoas e dos povos em nome da verdade. Por isso, para que a mensagem evangélica seja retamente entendida, faz-se necessário evitar qualquer palavra, raciocínio ou atitude que possa fazer pensar que um cristão coerente sacrifica a liberdade em nome da verdade. Se fosse dada esta impressão, ainda que involuntariamente, contribuir-se-ia para consolidar o pressuposto fundamental do relativismo: a ideia de que o amor à verdade e o amor à liberdade são incompatíveis, pelo menos na prática.
A comunicação de convicções cristãs e de conteúdos éticos necessita demonstrar com obras, e não somente com palavras, que entre verdade e liberdade existe uma verdadeira harmonia; isto requer, de um lado, estar profundamente convencido do valor e do significado da liberdade pessoal. Mas, por outro lado, obriga a distinguir cuidadosamente o terreno ético do terreno político e jurídico. Em primeiro lugar, toda chamada da autoridade dirige-se à liberdade; em segundo, o recurso à coação pode ser legítimo.
Ética e política
Nas questões éticas, a consciência abre-se à verdade, que tem um evidente poder normativo sobre as próprias decisões; está em jogo a relação da consciência pessoal com a concepção que se tem do bem humano, às vezes relacionado com princípios religiosos; por sua vez, o âmbito jurídico e político refere-se às relações entre pessoas ou entre pessoas e instituições, que – enquanto reguladas pelas leis – estão submetidas ao poder coativo que o Estado e seus representantes podem usar legitimamente.
Estes dois âmbitos – ético e político – estão muito relacionados, e muitas vezes têm um desenvolvimento paralelo. O homicídio intencional, por exemplo, tem ao mesmo tempo uma grave culpa moral e um crime que o Estado tem o dever de perseguir e punir. Mas ainda neste caso, os dois âmbitos apresentam diferenças significativas. Basta pensar, por exemplo, no perdão. Uma coisa é o perdão da culpa moral e outra bem diferente o perdão do crime: é desejável que os parentes da vítima de um homicídio perdoem cristãmente ao culpado, mas não seria admissível que o Estado seguisse sistematicamente uma política de impunidade do homicídio intencional. Afirmar o contrário seria um abuso ideológico ou uma grave ofensa contra o bem comum.
Neste tipo de diferença se faz necessário distinguir o plano ético do político no que se refere aos princípios morais do Evangelho. Para evitar más interpretações, há que se oferecer um fundamento ético às mensagens do tipo moral, explicitando que tal verdade não pretende impor-se mediante o uso do poder político de coação; isto é compatível com que, em outro tipo de verdades éticas, exista uma dimensão ético-política ou ético-jurídica. Nestes casos, deverá ser oferecida, ademais, uma justificação política ou jurídica, ou seja, deverá ser demonstrado não somente que o comportamento em questão é moralmente equivocado, mas também que existem razões específicas pelas quais o Estado há de proibi-la e puni-la. Razões que não são idênticas às razões éticas, porque não é missão do Estado perseguir a culpa moral, mas promover e tutelar o bem comum, prevenindo e punindo aquelas condutas que o lesionam (que prejudicam a segurança pública, a liberdade e os direitos dos demais, as instituições de interesse social como a família etc).
Ética e Estado
Certamente, o Estado promulga algumas vezes leis injustas. Nesses casos, o cidadão de reta consciência deveria poder criticá-las com liberdade. O Concílio Vaticano II afirmou com clareza o direito e o dever da Igreja de “dar seu juízo moral, inclusive sobre matérias referentes à ordem política, quando o exijam os direitos fundamentais da pessoa ou a salvação das almas”[4].
Nestes casos, é importante saber dar à legislação equivocada uma resposta culturalmente eficaz. Não é uma tarefa fácil, porque é preciso ir além das contra-posições polêmicas, sabendo assumir a parte de verdade da posição contrária. Quando em consciência deve-se criticar uma atuação do Estado, requer-se mostrar uma fina sensibilidade pelos valores das instituições democráticas, sensibilidade que não se deveria deixar indefinida pelo fato, certamente muito doloroso, de que, numa determinada ação, uma instituição concreta tenha se comportado de modo injusto.
A firmeza nos princípios éticos deve ser – e parecer – compatível com a consciência de que a realização de bens pessoais e sociais em um contexto histórico, geográfico e cultural determinado, caracteriza-se por uma contingência parcialmente insuperável. Em questões práticas, é freqüente que não exista uma única solução possível. Inclusive nas decisões da Igreja relativas a coisas não necessárias devem ser contingentes, precisamente porque se referem a uma realidade que depende muito das circunstâncias, que mudam com o passar do tempo; por isso, é necessário aprender a reconhecer que, nesse tipo de decisões, somente os princípios irrenunciáveis expressam o aspecto duradouro[5]. Ninguém pode pretender em questões temporais impor dogmas, que nãoexistem [6]. Com isto não se quer dizer que tudo neste mundo é contingente ou acidental ou opinável; mas trata-se de perceber com clareza que nos assuntos humanos, também os outros podem ter razão: veem a mesma questão que tu, mas de um ponto de vista diferente, com outra luz, com outra sombra, com outros contornos. – Somente na fé e na moral é que há um critério indiscutível: o da nossa Mãe a Igreja[7].
A autonomia das realidades temporais
No entanto, poderia ocorrer que a doutrina cristã sobre uma determinada matéria ético-social coincida com a que sustentam todos ou uma boa parte dos cidadãos que legitimamente militam em um determinado partido político. Nestes casos, poderia originar-se – involuntariamente – uma situação delicada, porque poderia parecer que os cristãos ou inclusive a Igreja, ao proporem seus ensinamentos, estão apoiando a uma determinada parte política e não apresentando unicamente a mensagem do Evangelho.
Esta confusão poderia motivar acusações de intromissão ou de falta de respeito para com o Estado; acusações que talvez serão um simples pretexto político, ou inclusive mal intencionadas; mas o que se deve ter em conta quando se busca informar a cultura com o espírito do Evangelho, esclarecendo serenamente aquela aparência de verdade que podem conter estas condenações. Dois tipos de considerações são oportunas.
A primeira é que todos os cidadãos, também os que formam parte de um órgão legislativo ou de um partido político, têm o direito e o dever de sustentar as soluções que em consciência consideram úteis para o bem do próprio país, alegando – se for possível – as razões que justificam sua convicção. Cada um é livre para consultar livros especializados que considera confiáveis, ou de falar com quem deseja; se um cidadão pode inspirar-se em determinada teoria política ou econômica, também pode fazê-lo na Doutrina Social da Igreja. As soluções políticas são medidas por seu valor intrínseco e pelas razões que as justificam. Questionar as fontes utilizadas por cada cidadão para formar suas convicções seria uma falta de respeito à autonomia da consciência dos demais. É fácil ver que a radicalização de tal atitude levaria a conclusões absurdas: por exemplo, afirmar que o Estado, para reforçar o seu estado laical, deveria favorecer o que a Igreja condena, como a escravidão.
A segunda consideração oportuna é a necessidade de se ter uma ideia clara acerca da distinção existente entre a missão do Estado e a da Igreja. A este propósito, Bento XVI ofereceu indicações muito úteis. A distinção entre o que é de César e o que é de Deus, com a consequente autonomia das realidades temporais, pertence à estrutura essencial do cristianismo[8]. É tarefa do Estado interrogar-se sobre o modo de realizar a justiça concretamente aqui e agora; neste campo, a Doutrina Social da Igreja se oferece como uma ajuda, que “não pretende outorgar à Igreja um poder sobre o Estado. Tampouco quer impor aos que não compartilham da fé suas próprias perspectivas e modos de comportamento”[9].
Tal doutrina argumenta a partir da razão e do direito natural, e reconhece que a construção de um justo ordenamento da vida social é uma tarefa política, que “não pode ser uma obrigação imediata da Igreja. Mas, como ao mesmo tempo é uma tarefa humana primária, a Igreja tem o dever de oferecer, mediante a purificação da razão e a formação ética, sua contribuição específica, para que as exigências da justiça sejam compreensíveis e politicamente realizáveis. A Igreja não pode nem deve empreender por conta própria a iniciativa política de realizar a sociedade mais justa possível. Não pode nem deve substituir o Estado. Mas também não pode nem deve ficar à margem na luta por justiça. Deve inserir-se nela através da argumentação racional e deve despertar as forças espirituais, sem as quais a justiça, que sempre exige também renúncias, não pode afirmar-se nem prosperar”[10].
A realização da justiça é um ponto em que a fé e a política se aproximam. Por isso requer-se uma atenção cuidadosa para que ninguém com boa vontade possa pensar que a fé cristã se identifica com uma das partes políticas existentes na sociedade. Certamente, a fé cristã tem algo a dizer às diversas culturas políticas dos homens e dos povos; mas a fé pressupõe a liberdade e se oferece à liberdade, que por ela se deve amar com as palavras e com as obras.
Autor: Ángel Rodríguez Luño
1. João Paulo II, Discurso ao Congresso nacional italiano de agentes da cultura e da comunicação, 9-11-2002, n. 2.
2.. Cf. por exemplo: Litt. enc. Redemptor hominis, 4-03-1979, n. 12; Litt. enc. Centesimus annus, 1-05-1991, nn. 4, 17 y 46; Litt. enc. Veritatis splendor, 6-08-1993, nn. 34, 84, 87 y 88; Litt. enc. Fides et ratio, 14-09-1998, n. 90.
3. Cf. por exemplo: Discurso ao Convênio diocesano promovido pela diocese de Roma sobre o tema “Família e comunidade cristã: formação da pessoa e transmissão da fé”, 7-6-2005; Discurso ao Corpo Diplomático acreditado diante da Santa Sé, 8-01-2007; Discurso a uma Delegação da “Académie des Sciences Morales et Politiques” de Paris, 10-02-2007; Discurso inaugural da V Conferência do Episcopado Latinoamericano, 13-5-2007.
4. Conc. Vaticano II, Const. past. Gaudium et spes, n. 76.
5. Cf. Bento XVI, Discurso aos Cardeais, Arcebispos, Bispos e Prelados superiores da Cúria Romana, 22-12-2005.
6. Conversaciones, n. 77.
7. Sulco, n. 275.
8. Cf Bento XVI, Litt. enc. Deus caritas est, 25-12-2005, n. 28.
9. Ibid.
10. Ibid.